domingo, 4 de novembro de 2012

Uerj - Língua portuguesa - 2º fase - questóes discursivas com gabarito comentado




TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
            O chefe da estação me olhou de cara feia, e me deu a passagem e o troco. Bateu com a prata na mesa. Se fosse falsa, estaria perdido. Guardei o cartão com ganância no bolso da calça. A estação se enchera. Um vendedor de bilhete me ofereceu um. Não desconfiava de mim. O chefe foi que me olhou com a cara fechada. Já se ouvia o apito do trem. Cheguei para o lugar onde paravam os carros de passageiros. E o barulho da máquina se aproximando. Estava com medo, com a impressão de que chegasse uma pessoa para me prender. Ninguém saberia. E o trem parado nos meus pés. Tomei o carro num banco do fim, meio escondido. O Padre Fileto me viu. Tirava esmolas para a obra da igreja.
            – Não foi para a parada?
            – Não senhor, vou ver o meu avô que está doente.
            A mesma mentira saída da boca automaticamente. Os meninos passavam vendendo tareco1. Quis comprar um pacote, mas estava com receio. Qualquer movimento de minha parte me parecia uma denúncia. O homem do bilhete voltou outra vez me oferecendo. Num banco da minha frente estava um sujeito me olhando. Sem dúvida, passageiro do trem. E me olhando com insistência. Levantou-se e veio falar comigo:
            – Menino, que querem dizer estas letras?
            – Instituto Nossa Senhora do Carmo.
            – Pensei que fosse “Isto não se conhece”...
            Ri-me sem querer. E as outras pessoas acharam graça. Pedi a Deus que o trem partisse. Por que não partira aquele trem? Meu boné me perderia. Podia ter vindo de chapéu. Nisto vi Seu Coelho. Entrei disfarçando para a latrina do trem. E não vi mais nada. Só saí de lá quando vi pelo buraco do aparelho a terra andando. Sentei-me no mesmo lugar. Vi a cadeia, o cemitério.(...)
            E o Pilar chegando. O Recreio do Coronel Anísio, com a sua casa na beira da linha. E a gente já via a igreja. O trem apitava para o sinal. Passou o poste branco. Saltei do trem como se tivesse perdido o jeito de andar. Escondi-me do moleque do engenho. O trem saía deixando no ar um cheiro de carvão de pedra. Lá se ia Ricardo com os jornais para o meu avô. Faltava-me coragem para bater na porta do engenho como fugitivo.
            E fui andando à toa pela linha de ferro. Que diria quando chegasse no engenho? Lembrei-me então que pela linha de ferro teria que atravessar a ponte. E desviei-me para a caatinga. Pegaria mais adiante o mesmo caminho. Estava pisando em terras do meu avô. O engenho de Seu Lula mostrava o seu bueiro pequeno, com um pedaço caído. Que diabo diria no Santa Rosa, quando chegasse? Era preciso inventar uma mentira.
            Fiquei parado pensando um instante. Achei a mentira com a alegria de quem tivesse encontrado um roteiro certo. Sonhara que meu avô estava doente e não pudera aguentar o aperreio do sonho. E fugira. Achariam graça e tudo se acabaria em alegria. Mas cadê coragem para chegar? Já me distanciava pouco da minha gente. O bueiro do Santa Rosa estava ali perto, com a sua boca em diagonal. Subia fumaça da destilação. Com mais cinco minutos estaria lá. Era só atravessar o rio. Fiquei parado pensando. O rio dava água pelos joelhos. O gado do pastoreador passava para o outro lado. E cadê coragem para agir? E o tempo a se sumir. E a tarde caindo. A casa-grande inteira brigaria comigo. No outro dia José Ludovina tomaria o trem para me levar. E o bolo, e os gritos de Seu Maciel. Vou, não vou, como as cantigas dos sapos na lagoa.
            Um trem de carga apitou na linha. Tirei os sapatos, arregaçando as calças para a travessia. A porteira do cercado batia forte no mourão2. E no silêncio da tarde, tudo aumentava de voz. (...)

JOSÉ LINS DO RÊGO
Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

Vocabulário:
1 tareco - biscoito
2 mourão - estaca


1. (Uerj 2011)  Os trechos transcritos abaixo exemplificam o emprego do mesmo conectivo “e” para exprimir diferentes relações temporais entre dois fatos.
E o barulho da máquina se aproximando. (...) E o trem parado nos meus pés. (1º parágrafo)
E o tempo a se sumir. E a tarde caindo. (11º parágrafo)
Aponte o significado desse conectivo. Em seguida, explicite a relação temporal dos fatos em cada um dos trechos.


Resposta:

A conjunção coordenativa “e” inicia duas orações que expressam a sucessão de sensações que o narrador vivencia naquele momento. Ao perceber que a tarde se aproxima do final, inquieta-se com a passagem do tempo e a sua falta de coragem para enfrentar a situação. Assim, o conectivo expressa adição, sugerindo ao leitor a simultaneidade de fatos que explicam a sua inquietude.




TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
Autorretrato falado

            Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
            Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
            Marinha, onde nasci.
            Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
            chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
            Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
            estar entre pedras e lagartos.
            Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
            Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
            sinto como que desonrado e fujo para o
            Pantanal onde sou abençoado a garças.
            Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo
            que fui salvo.
            Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
            Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
            Agora eu sou tão ocaso!
            Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
            faço coisas inúteis.
            No meu morrer tem uma dor de árvore.

MANOEL DE BARROS
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.


2. (Uerj 2011)  Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças. (v. 9-11)

A palavra “onde”, sublinhada acima, remete a um termo anteriormente expresso.
Transcreva esse termo.
Nomeie também a classe gramatical de “onde”, substitua-a por uma expressão equivalente e indique seu valor semântico.


Resposta:

O pronome relativo “onde” remete a “pantanal”, podendo ser substituído por “ em que” ou “no qual” para indicar o lugar onde acontece a ação enunciada na oração principal.




TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
TEXTO I

Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, 6longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no
Mutum. No meio dos Campos Gerais, mas num 1covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra.
Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o Tio Terêz
levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutum, tinha dito: – “É um lugar bonito, entre 7morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...”
Mas sua mãe, que era linda e com cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter de viver ali.
Queixava-se, principalmente nos demorados meses chuvosos, quando carregava o tempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem, qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. – “Oê, ah, o triste recanto...” – ela exclamava. Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com o Tio Terêz, Miguilim padeceu tanta saudade, de todos e de tudo, que às vezes nem conseguia chorar, e ficava sufocado. E foi descobrir, por si, que, umedecendo as ventas com um tico de cuspe, aquela aflição um pouco aliviava. Daí, pedia ao Tio Terêz que molhasse para ele o lenço; 4e Tio Terêz, quando davam com um riacho, um 2minadouro ou um poço de grota, sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre, na ponta de uma correntinha, e subia um punhado d’água. Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, então Tio Terêz tinha uma cabacinha que vinha cheia, essa dava para quatro sedes; uma cabacinha entrelaçada com cipós, que era tão formosa. – “É para beber, Miguilim...” – Tio Terêz dizia, caçoando. Mas Miguilim ria também e preferia não beber a sua parte, deixava-a para empapar o lenço e refrescar o nariz, na hora do arrocho. Gostava do Tio Terêz, irmão de seu pai.
5Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado – que o Mutum era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. 3Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação.
GUIMARÃES ROSA
Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Vocabulário:
ref. 1: covoão – baixada estreita e profunda
ref. 2: minadouro – olho d’água, quase sempre nascente de um córrego ou de um ribeirão


3. (Uerj 2009)  A repetição pode expressar diferentes intenções estilísticas, conforme se observa nos fragmentos a seguir.
“Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome” (ref. 6)
“É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato,” (ref. 7)
Explicite o sentido de cada um dos pares sublinhados.


Resposta:

A primeira expressão, longe, longe, dá a ideia de grande distância, muito longe, e a segunda expressão, morro e morro, dá a ideia de lugar cercado de morros, morros ao redor, no meio de morros.




TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
TEXTO II

A dança dos ossos

A noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma tarde de pavorosa tormenta, nas profundas e vastas florestas que bordam as margens do Paranaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de Goiás.
Eu viajava por esses lugares, e acabava de chegar ao porto, ou recebedoria, que há entre as duas províncias. Antes de entrar na mata, a tempestade tinha me surpreendido nas vastas e risonhas campinas que se estendem até a pequena cidade de Catalão, donde eu havia partido.
Seriam nove a dez horas da noite; junto a um fogo aceso defronte da porta da pequena casa da recebedoria, estava eu, com mais algumas pessoas, aquecendo os membros resfriados pelo terrível banho que a meu pesar tomara. A alguns passos de nós se desdobrava o largo veio do rio, refletindo em uma chispa retorcida, como uma serpente de fogo, o clarão avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os cercados e as casinhas dos poucos habitantes desse lugar, e, por trás dessas casinhas, estendiam-se as florestas sem fim.
No meio do silêncio geral e profundo sobressaía o rugido monótono de uma cachoeira próxima, que
ora 1estrugia como se estivesse a alguns passos de distância, ora quase se 2esvaecia em abafados murmúrios, conforme o correr da viração.
4No sertão, ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarinhos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma.
5Só o homem nas grandes cidades, o tigre nas florestas, o 3mocho nas ruínas, as estrelas no céu e o gênio na solidão do gabinete costumam velar nessas horas que a natureza consagra ao repouso.
Entretanto, eu e meus companheiros, sem pertencer a nenhuma dessas classes, por uma exceção de regra estávamos acordados a essas horas.
Meus companheiros eram bons e robustos caboclos, dessa raça semisselvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano, que vagueia pelas infindas florestas que correm ao longo do Paranaíba, e cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos das freguesias, e nem figuram nas estatísticas que dão ao império... não sei quantos milhões de habitantes.

BERNARDO GUIMARÃES
TUFANO, Douglas (org.) Antologia do conto brasileiro. Do Romantismo ao
Modernismo. São Paulo: Moderna, 2005.

Vocabulário:
ref. 1: estrugia – vibrava fortemente
ref. 2: esvaecia – desfalecia
ref. 3: mocho – coruja


4. (Uerj 2009)  No texto II, Bernardo Guimarães emprega diferentes figuras de linguagem.
Observe o fragmento:
“No sertão, ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarinhos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma.” (ref. 4)
Retire desse fragmento uma figura de linguagem, nomeando-a. Explique também a relação entre o emprego dessa figura e a estética romântica.


Resposta:

“é o silêncio da alma”: metáfora
Essa figura de linguagem expressa uma visão particular da natureza e do mundo, de acordo com a ênfase na subjetividade do Romantismo.



  
5. (Uerj 2005)  ENVELHECER: COM MEL OU FEL?
            Conheço algumas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticos, aliás, estão ficando cítricos, sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel nos olhos.
(...)
            Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente*, e vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.
            Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da ruga do tempo e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo e mesmo lugar - o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos grandes permitida.
            Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
            O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E, no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma faca nova.
            Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até desaparecer sem dor, como quem, caminhando contra o vento, de repente, se evaporasse. E iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria - gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
(...)
            Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas essenciais: aquele que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isso é verdade. Parcial, porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
            Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: "Penso que podia ir viver com os animais que são tão plácidos e bastam-se a si mesmos".  
            Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o Sol se queixar no entardecer. Nem a Lua chorar quando amanhece.
            (SANT'ANNA, Affonso R. de. "Coleção melhores crônicas". São Paulo: Global, 2003.)

* silenciosa

Ao problematizar a passagem para a velhice, o narrador faz referência a três diferentes elementos que, à primeira vista, seriam incompatíveis do ponto de vista semântico: elefante, vinho e faca.

a) Tendo em vista a coerência do texto, aponte o papel que esses elementos desempenham na narrativa e o que eles têm em comum.
b) "Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E OLHA QUE é uma tarefa enorme".
Justifique o emprego da expressão destacada no fragmento citado. Substitua-a por um único conectivo que mantenha a mesma relação de sentido existente entre as duas frases e realize as alterações necessárias.


Resposta:

a) Esses elementos agem como exemplos que comprovam o ponto de vista do narrador e funcionam como comparações em relação ao homem que envelhece mal.
O que há em comum entre eles é a questão de envelhecerem sem dor, com facilidade e leveza.

b) Uma das justificativas:
- representa uma marca de oralidade
- estabelece relação de concessão - ou contrajunção - entre os dois enunciados por ela ligados
- indica que, apesar de o tamanho dos elefantes ser muito grande, isso não impede que eles envelheçam bem

Uma dentre as substituições:
- Mesmo que seja uma tarefa enorme.
- Ainda que seja uma tarefa enorme.
- Embora seja uma tarefa enorme. 

Link para questões de outras disciplinas:

Nenhum comentário:

Postar um comentário