TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
O
chefe da estação me olhou de cara feia, e me deu a passagem e o troco. Bateu
com a prata na mesa. Se fosse falsa, estaria perdido. Guardei o cartão com
ganância no bolso da calça. A estação se enchera. Um vendedor de bilhete me
ofereceu um. Não desconfiava de mim. O chefe foi que me olhou com a cara
fechada. Já se ouvia o apito do trem. Cheguei para o lugar onde paravam os
carros de passageiros. E o barulho da máquina se aproximando. Estava com medo,
com a impressão de que chegasse uma pessoa para me prender. Ninguém saberia. E
o trem parado nos meus pés. Tomei o carro num banco do fim, meio escondido. O
Padre Fileto me viu. Tirava esmolas para a obra da igreja.
–
Não foi para a parada?
–
Não senhor, vou ver o meu avô que está doente.
A
mesma mentira saída da boca automaticamente. Os meninos passavam vendendo
tareco1. Quis comprar um pacote, mas estava com receio. Qualquer
movimento de minha parte me parecia uma denúncia. O homem do bilhete voltou
outra vez me oferecendo. Num banco da minha frente estava um sujeito me
olhando. Sem dúvida, passageiro do trem. E me olhando com insistência.
Levantou-se e veio falar comigo:
–
Menino, que querem dizer estas letras?
–
Instituto Nossa Senhora do Carmo.
–
Pensei que fosse “Isto não se conhece”...
Ri-me
sem querer. E as outras pessoas acharam graça. Pedi a Deus que o trem partisse.
Por que não partira aquele trem? Meu boné me perderia. Podia ter vindo de
chapéu. Nisto vi Seu Coelho. Entrei disfarçando para a latrina do trem. E não
vi mais nada. Só saí de lá quando vi pelo buraco do aparelho a terra andando.
Sentei-me no mesmo lugar. Vi a cadeia, o cemitério.(...)
E
o Pilar chegando. O Recreio do Coronel Anísio, com a sua casa na beira da
linha. E a gente já via a igreja. O trem apitava para o sinal. Passou o poste
branco. Saltei do trem como se tivesse perdido o jeito de andar. Escondi-me do
moleque do engenho. O trem saía deixando no ar um cheiro de carvão de pedra. Lá
se ia Ricardo com os jornais para o meu avô. Faltava-me coragem para bater na
porta do engenho como fugitivo.
E
fui andando à toa pela linha de ferro. Que diria quando chegasse no engenho?
Lembrei-me então que pela linha de ferro teria que atravessar a ponte. E
desviei-me para a caatinga. Pegaria mais adiante o mesmo caminho. Estava
pisando em terras do meu avô. O engenho de Seu Lula mostrava o seu bueiro
pequeno, com um pedaço caído. Que diabo diria no Santa Rosa, quando chegasse?
Era preciso inventar uma mentira.
Fiquei
parado pensando um instante. Achei a mentira com a alegria de quem tivesse
encontrado um roteiro certo. Sonhara que meu avô estava doente e não pudera
aguentar o aperreio do sonho. E fugira. Achariam graça e tudo se acabaria em
alegria. Mas cadê coragem para chegar? Já me distanciava pouco da minha gente.
O bueiro do Santa Rosa estava ali perto, com a sua boca em diagonal. Subia
fumaça da destilação. Com mais cinco minutos estaria lá. Era só atravessar o
rio. Fiquei parado pensando. O rio dava água pelos joelhos. O gado do
pastoreador passava para o outro lado. E cadê coragem para agir? E o tempo a se
sumir. E a tarde caindo. A casa-grande inteira brigaria comigo. No outro dia
José Ludovina tomaria o trem para me levar. E o bolo, e os gritos de Seu
Maciel. Vou, não vou, como as cantigas dos sapos na lagoa.
Um
trem de carga apitou na linha. Tirei os sapatos, arregaçando as calças para a
travessia. A porteira do cercado batia forte no mourão2. E no
silêncio da tarde, tudo aumentava de voz. (...)
JOSÉ LINS DO
RÊGO
Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio,
1971.
Vocabulário:
1 tareco - biscoito
2 mourão - estaca
1.
(Uerj 2011) Os trechos transcritos
abaixo exemplificam o emprego do mesmo conectivo “e” para exprimir diferentes
relações temporais entre dois fatos.
E o barulho da máquina se
aproximando. (...) E o trem parado nos meus pés. (1º parágrafo)
E o tempo a se sumir. E a
tarde caindo. (11º parágrafo)
Aponte o significado desse conectivo. Em
seguida, explicite a relação temporal dos fatos em cada um dos trechos.
Resposta:
A conjunção coordenativa “e” inicia duas
orações que expressam a sucessão de sensações que o narrador vivencia naquele
momento. Ao perceber que a tarde se aproxima do final, inquieta-se com a
passagem do tempo e a sua falta de coragem para enfrentar a situação. Assim, o
conectivo expressa adição, sugerindo ao leitor a simultaneidade de fatos que
explicam a sua inquietude.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Do bom uso do relativismo
Hoje, pela multimídia,
imagens e gentes do mundo inteiro nos entram pelos telhados, portas e janelas e
convivem conosco. É o efeito das redes globalizadas de comunicação. A primeira
reação é de perplexidade que pode provocar duas atitudes: ou de interesse para
melhor conhecer, que implica abertura e diálogo, ou de distanciamento, que
pressupõe fechar o espírito e excluir. De todas as formas, surge uma percepção
incontornável: nosso modo de ser não é o único. Há gente que, sem deixar de ser
gente, é diferente.
Quer dizer, nosso modo de
ser, de habitar o mundo, de pensar, de valorar e de comer não é absoluto. Há
mil outras formas diferentes de sermos humanos, desde a forma dos esquimós
siberianos, passando pelos yanomamis do Brasil, até chegarmos aos sofisticados
moradores de 1Alphavilles,
onde se resguardam as elites opulentas e amedrontadas. O mesmo vale para as
diferenças de cultura, de língua, de religião, de ética e de lazer.
Deste fato surge, de
imediato, o relativismo em dois sentidos: primeiro, importa relativizar todos
os modos de ser; nenhum deles é absoluto a ponto de invalidar os demais; impõe-se
também a atitude de respeito e de acolhida da diferença porque, pelo simples
fato de estar-aí, goza de direito de existir e de co-existir; segundo, o
relativo quer expressar o fato de que todos estão de alguma forma relacionados.
3Eles não podem ser pensados
independentemente uns dos outros, porque todos são portadores da mesma
humanidade.
Devemos alargar a
compreensão do humano para além de nossa concretização. Somos uma
geo-sociedade una, múltipla e diferente.
Todas estas manifestações
humanas são portadoras de valor e de verdade. Mas são um valor e uma verdade
relativos, vale dizer, relacionados uns aos outros, autoimplicados, sendo que
nenhum deles, tomado em si, é absoluto.
Então não há verdade
absoluta? Vale o 2everything
goes de alguns pós-modernos? Quer dizer, o “vale tudo”? Não é o vale tudo.
Tudo vale na medida em que mantém relação com os outros, respeitando-os em sua
diferença. Cada um é portador de verdade mas ninguém pode ter o monopólio dela.
Todos, de alguma forma, participam da verdade. Mas podem crescer para uma
verdade mais plena, na medida em que mais e mais se abrem uns aos outros.
Bem dizia o poeta espanhol
António Machado: “Não a tua verdade. A verdade. Vem comigo buscá-la. A tua,
guarde-a”. Se a buscarmos juntos, no diálogo e na cordialidade, então mais e
mais desaparece a minha verdade para dar lugar à Verdade comungada por todos.
A ilusão do Ocidente é de
imaginar que a única janela que dá acesso à verdade, à religião verdadeira, à
autêntica cultura e ao saber crítico é o seu modo de ver e de viver. As demais
janelas apenas mostram paisagens distorcidas. Ele se condena a um
fundamentalismo visceral que o fez, outrora, organizar massacres ao impor a sua
religião e, hoje, guerras para forçar a democracia no Iraque e no Afeganistão.
Devemos fazer o bom uso do
relativismo, inspirados na culinária. Há uma só culinária, a que prepara os
alimentos humanos. Mas ela se concretiza em muitas formas, as várias cozinhas:
a mineira, a nordestina, a japonesa, a chinesa, a mexicana e outras. Ninguém
pode dizer que só uma é a verdadeira e gostosa e as outras não. Todas são
gostosas do seu jeito e todas mostram a extraordinária versatilidade da arte
culinária.
Por que com a verdade
deveria ser diferente?
LEONARDO BOFF
Vocabulário:
ref. 1: Alphavilles: condomínios de luxo
ref. 2: everything goes:
literalmente, “todas as coisas vão”; equivale à expressão “vale tudo”
2.
(Uerj 2009) Eles não podem ser pensados
independentemente uns dos outros, porque todos são portadores da mesma
humanidade. (ref. 3)
Identifique a relação de sentido que a
oração sublinhada estabelece com a parte do período que a antecede. Reescreva
todo o período, substituindo o conectivo e mantendo essa mesma relação de
sentido.
Resposta:
Uma das relações e uma das respectivas
reescrituras:
• Causa
– Eles não podem ser pensados
independentemente uns dos outros visto que todos são portadores da mesma
humanidade.
– Eles não podem ser pensados
independentemente um dos outros já que todos são portadores da mesma
humanidade.
Como todos são portadores da
mesma humanidade, eles não podem ser pensados independentemente uns dos outros.
• Explicação
– Eles não podem ser pensados
independentemente um dos outros, pois todos são portadores da mesma
humanidade.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
TEXTO II
A dança dos ossos
A noite, límpida e calma,
tinha sucedido a uma tarde de pavorosa tormenta, nas profundas e vastas
florestas que bordam as margens do Paranaíba, nos limites entre as províncias
de Minas e de Goiás.
Eu viajava por esses
lugares, e acabava de chegar ao porto, ou recebedoria, que há entre as duas
províncias. Antes de entrar na mata, a tempestade tinha me surpreendido nas
vastas e risonhas campinas que se estendem até a pequena cidade de Catalão,
donde eu havia partido.
Seriam nove a dez horas da
noite; junto a um fogo aceso defronte da porta da pequena casa da recebedoria,
estava eu, com mais algumas pessoas, aquecendo os membros resfriados pelo
terrível banho que a meu pesar tomara. A alguns passos de nós se desdobrava o
largo veio do rio, refletindo em uma chispa retorcida, como uma serpente de
fogo, o clarão avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os cercados e
as casinhas dos poucos habitantes desse lugar, e, por trás dessas casinhas,
estendiam-se as florestas sem fim.
No meio do silêncio geral e
profundo sobressaía o rugido monótono de uma cachoeira próxima, que
ora 1estrugia
como se estivesse a alguns passos de distância, ora quase se 2esvaecia em abafados
murmúrios, conforme o correr da viração.
4No sertão, ao cair da noite, todos tratam de
dormir, como os passarinhos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é
o silêncio da alma.
5Só o homem nas grandes cidades, o tigre nas
florestas, o 3mocho nas
ruínas, as estrelas no céu e o gênio na solidão do gabinete costumam velar
nessas horas que a natureza consagra ao repouso.
Entretanto, eu e meus companheiros, sem
pertencer a nenhuma dessas classes, por uma exceção de regra estávamos
acordados a essas horas.
Meus companheiros eram bons
e robustos caboclos, dessa raça semisselvática e nômade, de origem dúbia entre
o indígena e o africano, que vagueia pelas infindas florestas que correm ao
longo do Paranaíba, e cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos
das freguesias, e nem figuram nas estatísticas que dão ao império... não sei
quantos milhões de habitantes.
BERNARDO
GUIMARÃES
TUFANO, Douglas
(org.) Antologia do conto brasileiro. Do Romantismo ao
Modernismo. São Paulo: Moderna, 2005.
Vocabulário:
ref. 1: estrugia – vibrava fortemente
ref. 2: esvaecia – desfalecia
ref. 3: mocho – coruja
3.
(Uerj 2009) “Só o homem nas grandes
cidades, o tigre nas florestas, o mocho nas ruínas, as estrelas no céu e o
gênio na solidão do gabinete costumam velar nessas horas que a natureza
consagra ao repouso.” (ref. 5)
Classifique sintaticamente a segunda oração
do período acima. Em seguida, substitua essa oração por outra de sentido
correspondente, sem conectivo, preservando sua estrutura inicial.
Resposta:
Classificação: subordinada adjetiva
restritiva.
Oração: consagradas ao repouso pela
natureza.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
TEXTO IV
O dia abriu
seu para-sol bordado
O dia abriu seu para-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude..
MARIO QUINTANA
Prosa e
verso. Porto
Alegre: Globo, 1978.
4.
(Uerj 2009) Há no poema de Mario Quintana
um mesmo sinal de pontuação – o ponto de exclamação – que aparece em versos
diferentes e com sentidos distintos.
Explicite o valor semântico atribuído a esse
sinal em cada um dos versos.
Resposta:
1ª ocorrência: surpresa, perplexidade.
2ª ocorrência: lástima, pesar.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
A CIDADE SITIADA
(1949)
O
subúrbio de S. Geraldo, no ano de 192..., já misturava ao cheiro de estrebaria
algum progresso. Quanto mais fábricas se abriam nos arredores, mais o subúrbio
se erguia em vida própria sem que os habitantes pudessem dizer que
transformação os atingia. Os movimentos já se haviam congestionado e não se
poderia atravessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos
vagarosos puxavam, enquanto um automóvel impaciente buzinava atrás lançando
fumaça. Mesmo os crepúsculos eram agora enfumaçados e sanguinolentos. De manhã,
entre os caminhões que pediam passagem para a nova usina, transportando madeira
e ferro, as cestas de peixe se espalhavam pela calçada, vindas através da noite
de centros maiores. Dos sobrados desciam mulheres despenteadas com panelas, os
peixes eram pesados quase na mão, enquanto vendedores em manga de camisa
gritavam os preços. E quando sobre o alegre movimento da manhã soprava o vento
fresco e perturbador, dir-se-ia que a população inteira se preparava para um
embarque.
Ao
pôr-do-sol galos invisíveis ainda cocoricavam. E misturando-se ainda à poeira
metálica das fábricas o cheiro das vacas nutria o entardecer. Mas de noite, com
as ruas subitamente desertas, já se respirava o silêncio com desassossego, como
numa cidade; e nos andares piscando de luz todos pareciam estar sentados. As
noites cheiravam a estrume e eram frescas. Às vezes chovia.
(LISPECTOR, Clarice. A Cidade sitiada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.)
5. (Uerj 2005) Nos trechos transcritos a seguir, a conjunção ENQUANTO expressa o mesmo
valor semântico fundamental, mas, em um deles, em virtude do contexto, ela
expressa também um valor de contraste:
1)
não se poderia atravessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos
vagarosos puxavam, ENQUANTO um automóvel impaciente buzinava atrás lançando
fumaça.
2)
Dos sobrados desciam mulheres despenteadas com panelas, os peixes eram pesados
quase na mão, ENQUANTO vendedores em manga de camisa gritavam os preços.
a)
Classifique sintaticamente as orações introduzidas por ENQUANTO e indique o
valor semântico fundamental expresso por essa conjunção nos dois trechos.
b)
Identifique o trecho em que a conjunção expressa também o valor de contraste e
justifique sua resposta.
Resposta:
a)
Subordinadas adverbiais temporais.
Simultaneidade.
b)
Trecho 1.
Há
contraste entre: a impaciência do automóvel e a lentidão dos cavalos.
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