TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Recordações
do escrivão Isaías Caminha
Eu não sou literato, detesto com toda a
paixão essa espécie de animal. O que observei neles, no tempo em que estive na
redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, nem os imitar. 1São
em geral de uma lastimável limitação de ideias, cheios de fórmulas, de
receitas, 9só capazes de colher fatos detalhados e impotentes para
generalizar, curvados aos fortes e às ideias vencedoras, e antigas, adstritos a
um infantil fetichismo do estilo e guiados por conceitos obsoletos e um pueril
e errôneo critério de beleza. Se me esforço por fazê-lo literário é para que
ele possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao
espírito geral e no seu interesse, com a linguagem acessível a ele. É esse o
meu propósito, o meu único propósito. Não nego que para isso tenha procurado
modelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance das mãos,
tenho os autores que mais amo. (...) 5Confesso que os leio, que os
estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. 6Mas
não é a ambição literária que me move ao procurar esse dom misterioso para
animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria
modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo, a
não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz
como eu e com os desejos que tinha há dez anos passados. Tento mostrar que são
legítimos e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença.
7Entretanto, quantas dores,
quantas angústias! 2Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais
de qualquer ordem. Cercam-me dois ou três bacharéis idiotas e um médico
mezinheiro, 10repletos de orgulho de suas cartas que sabe Deus como
tiraram. (...) Entretanto, se eu amanhã lhes fosse falar neste livro - que
espanto! que sarcasmo! que crítica desanimadora não fariam. Depois que se foi o
doutor Graciliano, excepcionalmente simples e esquecido de sua carta
apergaminhada, nada digo das minhas leituras, não falo das minhas lucubrações
intelectuais a ninguém, e minha mulher, quando me demoro escrevendo pela noite
afora, grita-me do quarto:
3– Vem dormir, Isaías! Deixa
esse relatório para amanhã!
De forma que não tenho por onde aferir se as
minhas Recordações preenchem o fim a que as destino; se a minha
inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. Que
tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me
acho, em que 11me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher
pública... 12Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que
julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela.
Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na
coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando
todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo
furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não me preocupei em fazê-la
pública, anunciar e arranjar um bom recebimento dos detentores da opinião
nacional. 13Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também,
amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que
diga o que não pude nem soube dizer.
(...) 8Imagino como um escritor
hábil não saberia dizer o que eu senti lá dentro. Eu que sofri e pensei não o
sei narrar. 4Já por duas vezes, tentei escrever; mas, relendo a
página, achei-a incolor, comum, e, sobretudo, pouco expressiva do que eu de
fato tinha sentido.
LIMA BARRETO
Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
Letras, 2010.
1.
(Uerj 2013) só capazes de colher fatos
detalhados e impotentes para generalizar, (ref. 9)
Esse trecho se refere à utilização do
seguinte método de argumentação:
a) indutivo
b) dedutivo
c) dialético
d) silogístico
Resposta:
[A]
Dedução é a
conclusão inferida após a análise dos fatos, a dialética interpreta os
processos antitéticos que tendem a se resolver numa solução-síntese, e o
silogismo é o raciocínio que parte de duas proposições para delas deduzir uma
terceira. Assim, o método de argumentação que parte de fatos ou dados
particulares para elaborar princípios gerais ou inferir uma conclusão é o
indutivo, método implicitamente referido em “só capazes de colher fatos
detalhados e impotentes para generalizar”.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Ciência e Hollywood
5Infelizmente, é verdade:
explosões não fazem barulho algum no espaço. Não me lembro de um só filme que
tenha retratado isso direito. 6Pode ser que existam alguns, mas se
existirem não fizeram muito sucesso. 10Sempre vemos explosões
gigantescas, estrondos fantásticos. Para existir ruído é necessário um meio
material que transporte as perturbações que chamamos de ondas sonoras. Na
ausência de atmosfera, ou água, ou outro meio, as perturbações não têm onde se
propagar. 7Para um produtor de cinema, a questão não passa pela
ciência. Pelo menos não como prioridade. Seu interesse é tornar o filme
emocionante, e explosões têm justamente este papel; roubar o som de uma grande
espaçonave explodindo torna a cena bem sem graça.
11Recentemente, o debate
sobre as liberdades científicas tomadas pelo cinema tem aquecido. O sucesso do
filme O dia depois de amanhã (The day after tomorrow), faturando
mais de meio bilhão de dólares, e seu cenário de uma idade do gelo ocorrendo em
uma semana, em vez de décadas ou, melhor ainda, centenas de anos, 9levantaram
as sobrancelhas de cientistas mais rígidos que veem as distorções com desdém e
esbugalharam os olhos dos espectadores (a maioria) que pouco ligam se a ciência
está certa ou errada. Afinal, cinema é diversão.
15Até recentemente, defendia
a posição mais rígida, que filmes devem tentar ao máximo ser fiéis à ciência
que retratam. Claro, isso sempre é bom. Mas não acredito mais que seja
absolutamente necessário. 1Existe uma diferença crucial entre um
filme comercial e um documentário científico. 12Óbvio, 2documentários
devem retratar fielmente a ciência, educando e divertindo a população, mas
filmes não têm necessariamente um compromisso pedagógico. 13As
pessoas não vão ao cinema para serem educadas, ao menos como via de regra.
Claro, 3filmes históricos ou
mesmo aqueles fiéis à ciência têm enorme valor cultural. Outros educam as
emoções através da ficção. 14Mas, se existirem exageros, eles não
deverão ser criticados como tal. Fantasmas não existem, mas filmes de terror
sim. Pode-se argumentar que, no caso de filmes que versam sobre temas
científicos, 4as pessoas vão ao cinema esperando uma ciência crível.
Isso pode ser verdade, mas elas não deveriam basear suas conclusões no que diz
o filme. No mínimo, o cinema pode servir como mecanismo de alerta para questões
científicas importantes: o aquecimento global, a inteligência artificial, a
engenharia genética, as guerras nucleares, os riscos espaciais como cometas ou
asteroides etc. 8Mas o conteúdo não deve ser levado ao pé da letra. 16A
arte distorce para persuadir. E o cinema moderno, com efeitos especiais
absolutamente espetaculares, distorce com enorme facilidade e poder de
persuasão.
O que os cientistas podem fazer, e isso está
virando moda nas universidades norte-americanas, é usar filmes nas salas de
aula para educar seus alunos sobre o que é cientificamente correto e o que é
absurdo. Ou seja, usar o cinema como ferramenta pedagógica. 17Os
alunos certamente prestarão muita atenção, muito mais do que em uma aula
convencional. Com isso, será possível educar a população para que, no futuro,
um número cada vez maior de pessoas possa discernir o real do imaginário.
MARCELO GLEISER
Adaptado de www1.folha.uol.com.br.
2.
(Uerj 2013) A oposição entre “ciência”
e “Hollywood”, expressa no título do artigo de Gleiser, corresponde a outra
oposição bastante estudada no campo da literatura, que se verifica entre:
a) acontecimento e opinião
b) historicismo e atualidade
c) verdade e verossimilhança
d) particularização e
universalismo
Resposta:
[C]
Se a ciência
fundamenta as suas teses aos resultados obtidos através da experiência e se a
indústria cinematográfica tem por fim a criação artística através do uso da
fantasia, a arte literária deve atender à verossimilhança, harmonia e coerência
entre os atos narrados e os elementos fantasiosos ou imaginários que sejam
determinantes no texto.
TEXTO PARA AS
PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Nós, escravocratas
Há exatos cem anos, saía da vida para a
história um dos maiores brasileiros de todos os tempos: o pernambucano Joaquim
Nabuco. 1Político que ousou pensar, intelectual que não se omitiu em
agir, pensador e ativista com causa, principal artífice da abolição do regime
escravocrata no Brasil.
Apesar da vitória conquistada, Joaquim
Nabuco reconhecia: “2Acabar com a escravidão não basta. É preciso
acabar com a obra da escravidão”, como lembrou na semana passada Marcos Vinicios
Vilaça, em solenidade na Academia Brasileira de Letras. Mas a obra da
escravidão continua viva, sob a forma da exclusão social: pobres, especialmente
negros, sem terra, sem emprego, sem casa, sem água, sem esgoto, muitos ainda
sem comida; sobretudo sem acesso à educação de qualidade.
Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco,
a obra da escravidão se mantém e continuamos escravocratas.
3Somos escravocratas ao
deixarmos que a escola seja tão diferenciada, conforme a renda da família de
uma criança, quanto eram diferenciadas as vidas na Casa Grande ou na Senzala.
Somos escravocratas porque, até hoje, não fizemos a distribuição do
conhecimento: instrumento decisivo para a liberdade nos dias atuais. Somos
escravocratas porque todos nós, que estudamos, escrevemos, lemos e obtemos
empregos graças aos diplomas, beneficiamo-nos da exclusão dos que não
estudaram. Como antes, os brasileiros livres se beneficiavam do trabalho dos
escravos.
Somos escravocratas ao jogarmos, sobre os
analfabetos, a culpa por não saberem ler, em vez de assumirmos nossa própria
culpa pelas decisões tomadas ao longo de décadas. Privilegiamos investimentos
econômicos no lugar de escolas e professores. Somos escravocratas, porque
construímos universidades para nossos filhos, mas negamos a mesma chance aos
jovens que foram deserdados do Ensino Médio completo com qualidade. Somos
escravocratas de um novo tipo: a negação da educação é parte da obra deixada
pelos séculos de escravidão.
A exclusão da educação substituiu o
sequestro na África, o transporte até o Brasil, a prisão e o trabalho forçado.
Somos escravocratas que não pagamos para ter escravos: nossa escravidão ficou
mais barata, e o dinheiro para comprar os escravos pode ser usado em benefício
dos novos escravocratas. Como na escravidão, o trabalho braçal fica reservado
para os novos escravos: os sem educação.
Negamo-nos a eliminar a obra da escravidão.
Somos escravocratas porque ainda achamos
naturais as novas formas de escravidão; e nossos intelectuais e economistas
comemoram minúscula distribuição de renda, como antes os senhores se
vangloriavam da melhoria na alimentação de seus escravos, nos anos de alta no
preço do açúcar. Continuamos escravocratas, comemorando gestos parciais. 4Antes,
com a proibição do tráfico, a lei do ventre livre, a alforria dos sexagenários.
Agora, com o bolsa família, o voto do analfabeto ou a aposentadoria rural.
Medidas generosas, para inglês ver e sem a ousadia da abolição plena.
Somos escravocratas porque, como no século
XIX, não percebemos a estupidez de não abolirmos a escravidão. 5Ficamos
na mesquinhez dos nossos interesses imediatos negando fazer a revolução
educacional que poderia completar a quase-abolição de 1888. Não ousamos romper
as amarras que envergonham e impedem nosso salto para uma sociedade civilizada,
como, por 350 anos, a escravidão nos envergonhava e amarrava nosso avanço.
Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco,
a obra criada pela escravidão continua, porque continuamos escravocratas. E, ao
continuarmos escravocratas, não libertamos os escravos condenados à falta de
educação.
CRISTOVAM
BUARQUE. Adaptado de http://oglobo.globo.com, 30/01/2000.
3.
(Uerj 2013) No desenvolvimento da
argumentação, o autor enumera razões específicas, facilmente constatadas no
cotidiano, para sustentar sua opinião, anunciada no título, de que todos nós
seríamos ainda escravocratas.
Esse método argumentativo, que apresenta
elementos específicos da experiência social cotidiana, para deles extrair uma
conclusão geral, é conhecido como:
a) direto
b) dialético
c) dedutivo
d) indutivo
Resposta:
[D]
No método argumentativo
direto, a conclusão é estabelecida através da combinação lógica dos axiomas já
existentes. No dialético, interpretam-se os processos com a oposição de
premissas que tendem a se resolver numa solução (tese + antítese = síntese,
conciliação de contrários). Já o método dedutivo parte da análise geral para o
particular. O método indutivo estabelece um raciocínio que parte do particular
para o geral, como o que Cristovam Buarque aplica no texto “Nós,
escravocratas”, ao enumerar razões específicas, facilmente constatadas no
cotidiano, para sustentar sua opinião. É correta a opção [D].
4.
(Uerj 2013) Político que ousou pensar,
intelectual que não se omitiu em agir, pensador e ativista com causa, principal
artífice da abolição do regime escravocrata no Brasil. (ref. 1)
Na frase acima, Cristovam Buarque define
Joaquim Nabuco de quatro maneiras. As três primeiras definições partem de
determinadas pressuposições.
Uma pressuposição que se pode deduzir da
leitura do fragmento é:
a) ativistas têm abraçado
muitas causas
b) intelectuais costumam
resistir à ação
c) políticos ousam pensar a
respeito de tudo
d) pensadores têm lutado pelo
fim da escravidão
Resposta:
[B]
As orações adjetivas
restritivas “que ousou pensar” e “que não se omitiu em agir” caracterizam o
político e intelectual Joaquim Nabuco que se destacou através de exposição de
opiniões acompanhadas de ações concretas e estabelecem um pressuposto sobre os
demais que, segundo Cristovam Buarque, não procederiam da mesma forma. Ao
afirmar que ele foi um pensador e ativista com causa, deixa implícito também
que havia outros que não o costumavam fazer. Assim, apenas [B] é correta, pois
confirma a opinião do autor de que intelectuais priorizam as análises teóricas
e costumam resistir à ação.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Igual-Desigual
Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são
iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e
internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas
e rondós são iguais
1e todos, todos
2os poemas em verso livre
são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
3Todos os amores, iguais
iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou
indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro
homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
4Todo ser humano é um estranho
5ímpar.
CARLOS DRUMMOND
DE ANDRADE
Nova
reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
– best-sellers – livros mais vendidos
– gazéis, virelais,
sextinas, rondós – tipos de poema
5.
(Uerj 2013) e todos, todos
os poemas em verso livre
são enfadonhamente iguais. (ref. 1 e 2)
Os versos livres são aqueles que não se
submetem a um padrão.
Considerando essa definição, identifica-se
nos versos acima a figura de linguagem denominada:
a) antítese
b) metáfora
c) metonímia
d) eufemismo
Resposta:
[A]
Por não estar sujeito a
regras métricas de versificação, o verso livre deveria exprimir a sensação de
liberdade do poeta que desejava escapar aos padrões rígidos do academicismo
conservador. No entanto, Carlos Drummond observa que até mesmo os poemas que
adotam esse procedimento são “enfadonhamente iguais”, gerando um paradoxo, ou
antítese, como se refere em [A].
TEXTO PARA AS
PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Memórias
do cárcere
1Resolvo-me
a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos − e, antes de
começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo
notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, 16com o
decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir
esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças,
esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia,
como adiante se verá. 2Também me afligiu a ideia de jogar no papel
criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil.
Repugnava-me deformá-las, 9dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma
espécie de romance; mas teria eu o direito de 5utilizá-las em
história presumivelmente verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas,
realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e obliteradas?
(...)
O receio de
cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo convivência
forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros
distanciaram-se, apagaram-se.
10Outros
permaneceram junto a mim, ou vão reaparecendo ao cabo de longa ausência,
alteram-se, completam-se, avivam recordações meio confusas − e não vejo
inconveniência em mostrá-los.
(...)
E aqui chego à
última objeção que me impus. 13Não resguardei os apontamentos
obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui
obrigado a atirá-los na água. 6Certamente me irão fazer falta, mas
terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me
desse material. 17Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo
a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma
partida, 11quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em
manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a
forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos,
gemidos. Mas que significa isso? 15Essas coisas verdadeiras podem
não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco,
pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram,
associaram-se, e é inevitável mencioná-las.
7Afirmarei
que sejam absolutamente exatas? Leviandade. (...)14Nesta
reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que
julgo ter notado. 3Outros devem possuir lembranças diversas. Não as
contesto, mas espero que não recusem as minhas: 4conjugam-se,
completam-se e me dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito
complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de
recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham
relevo, a ação começa. 18Com esforço desesperado arrancamos de cenas
confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo
reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre,
nítido, irrecusável, terá sido realmente praticado? Não será incongruência?
Certo a vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos
havermos enganado? Nessas vacilações dolorosas, 12às vezes
necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos
de que a minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a causa dela, 8desenterrarmos
pacientemente as condições que a determinaram. Como isso variava em excesso,
era natural que variássemos também, apresentássemos falhas. Fiz o possível por
entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores,
admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus
defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com frequência
egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura
que nos podiam infligir naquele ano terrível.
GRACILIANO RAMOS
Memórias do cárcere.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
6.
(Uerj 2012) Em sua reflexão acerca das
possibilidades de recompor a memória para escrever o livro, o narrador utiliza
um procedimento de construção textual que contribui para a expressão de suas
inquietudes. Tal procedimento pode ser identificado como:
a) encadeamento de fatos
passados
b) extensão de parágrafos
narrativos
c) sequência de frases
interrogativas
d) construção de diálogos
presumidos
Resposta:
[C]
O narrador, perante as
dúvidas quanto à composição da narrativa através do fluxo da memória (“Dúvidas
terríveis nos assaltam”), formula uma série de interrogações na tentativa de
encontrar uma resposta que acalme as suas inquietudes (“De que modo reagiram os
caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido,
irrecusável, terá sido realmente praticado? Não será incongruência? Certo a
vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos havermos
enganado?”), como se transcreve em [C].
7.
(Uerj 2012) Normalmente, é possível
omitir elementos de construção de frases sem dificultar a compreensão do
leitor, uma vez que ficam subentendidos pelo conjunto da própria estrutura ou
pela sequência em que se apresentam.
O exemplo do texto em que há omissão de
elementos de construção de frases, sem prejuízo da compreensão, é:
a) com o decorrer do tempo,
ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta
narrativa. (ref.16)
b) Se ele existisse, ver-me-ia
propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a
hora exata de uma partida, (ref.17)
c) Afirmarei que sejam
absolutamente exatas? Leviandade. (ref.7)
d) Com esforço desesperado
arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam.
(ref.18)
Resposta:
[C]
O termo “leviandade”
constitui a resposta curta, transcrita em frase nominal, à pergunta
anteriormente formulada (“Afirmarei que sejam absolutamente exatas?”). Fica
subentendido pelo conjunto da própria estrutura que o narrador considera
insensato atribuir qualidade de absoluta exatidão às lembranças do passado.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Sobre a origem da poesia
A origem da poesia se
confunde com a origem da própria linguagem.
Talvez fizesse mais sentido
perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Ou: qual a origem do
discurso não poético, já que, restituindo laços mais íntimos entre os signos e
as coisas por eles designadas, 1a poesia aponta para um uso muito
primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas
conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios
ou telefonemas.
4Como se ela restituísse,
através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa − que
o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da
história.
A manifestação do que
chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível
infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical,
gerando essas duas metades − significante e significado.
Houve esse tempo? Quando
não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome
da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu
peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então
música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se
conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas,
mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?
2Pode ser que essas
suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico,
tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente
alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado.
Lembro-me de ter lido,
certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para
o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo ser, enquanto
verbo de ligação. Assim, o ser das coisas ditas se manifestaria nelas próprias
(substantivos), 5não numa partícula verbal externa a elas, o que
faria delas línguas poéticas por natureza, mais propensas à composição
analógica.
3Mais perto do senso comum,
podemos atentar para como colocam os índios americanos falando, na maioria dos
filmes de cowboy − eles dizem “maçã vermelha”, “água boa”, “cavalo
veloz”; em vez de “a maçã é vermelha”, “essa água é boa”, “aquele cavalo é
veloz”. Essa forma mais sintética, telegráfica, aproxima os nomes da própria
existência − como se a fala não estivesse se referindo àquelas coisas, e sim
apresentando-as (ao mesmo tempo em que se apresenta).
6No seu estado de língua, no
dicionário, as palavras intermedeiam nossa relação com as coisas, impedindo
nosso contato direto com elas. 7A linguagem poética inverte essa
relação, pois, vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso
sensível mais direto entre nós e o mundo.
(...)
Já perdemos a inocência de
uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os
olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. 8Mas
temos esses pequenos oásis − os poemas − contaminando o deserto da
referencialidade.
ARNALDO ANTUNES
www.arnaldoantunes.com.br
8.
(Uerj 2012) No último parágrafo, o
autor se refere à plenitude da linguagem poética, fazendo, em seguida, uma
descrição que corresponde à linguagem não poética, ou seja, à linguagem
referencial.
Pela descrição apresentada, a linguagem
referencial teria, em sua origem, o seguinte traço fundamental:
a) o desgaste da intuição
b) a dissolução da memória
c) a fragmentação da
experiência
d) o enfraquecimento da
percepção
Resposta:
[C]
Arnaldo Antunes considera
que a poesia atinge a plenitude da linguagem na sua função do estabelecimento
de vínculos entre pessoas e coisas, por isso deduz-se que a linguagem
referencial fragmenta a experiência gerada pelas sensações.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
TEXTO I
1Durante mais de trinta
anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como burro
ensinado em frente à casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e
pontual, o velho funcionário.
Um dia, porém, José Maria
faltou. O motorneiro batia a sirene. Os passageiros se impacientavam. Floripes
correu aflita a avisar o patrão. Achou-o de pijama, estirado na poltrona,
querendo rir.
– Seu José Maria, o senhor
hoje perdeu a hora! Há muito tempo o motorneiro está a dar sinal.
– Diga-lhe que não preciso
mais.
A velha portuguesa não
compreendeu.
– Vá, diga que não vou...
Que de hoje em diante não irei mais.
A criada chegou à janela,
gritou o recado. E o bondezinho desceu sem o seu mais antigo passageiro.
Floripes voltou ao patrão.
Interroga-o com o olhar.
– Não sabes que estou
aposentado?
(...)
Interrompera da noite para
o dia o hábito de esperar o bondezinho, comprar o jornal da manhã, bebericar o
café na Avenida, e instalar-se à mesa do Ministério, sisudo e calado, até às
dezessete horas.
Que fazer agora?
Não mais informar
processos, não mais preocupar-se com o nome e a cara do futuro Ministro.
Pela primeira vez fartava a
vista no cenário de águas e montanhas que a bruma fundia.
(...)
4Floripes serviu-lhe o
jantar, deixou tudo arrumado, e retirou-se para dormir no barraco da filha.
2Mais do que nunca, sentiu
José Maria naquela noite a solidão da casa. Não tinha amigos, não tinha mulher
nem amante. E já lera todos os jornais. Havia o telefone, é verdade. Mas
ninguém chamava. Lembrava-se que certa vez, há uns quinze anos, aquela fria
coisa, pendurada e morta, se aquecera à voz de uma mulher desconhecida. A
máquina que apenas servia para recados ao armazém e informações do Ministério
transformara-se então em instrumento de música: adquirira alma, cantava quase.
De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a ser na parede do
corredor a aranha de metal, 3sempre calada. O sussurro da vida, o
sangue de suas paixões passavam longe do telefone de Zé Maria...
Como vencer a noite que mal
começava?
(...)
O telefone toca. Quem será?
(...)
Era engano! Antes não o
fosse. A quem estaria destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que
dissesse desaforos, que o xingasse.
(...)
Atirou-se de bruços na
cama. E sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de há
quinze anos... Foi andando para o passado... Abriu-se-lhe uma cidade de
montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás – tinha então dezesseis
anos –, ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Duília. Aí parou. E Duília
lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moça
pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter
acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio de sonho que
trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
(...)
Toda vez que pensava nela,
o longo e inexpressivo interregno* do Ministério que chegava a confundir-se com
a duração definitiva de sua própria vida apagava-se-lhe de repente da memória.
O tempo contraía-se.
Duília!
Reviu-se na cidade natal
com apenas dezesseis anos de idade, a acompanhar a procissão que ela seguia
cantando. Foi nessa festa da Igreja, num fim de tarde, que tivera a grande
revelação.
Passou a praticar com mais
assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe
recordavam a presença corporal da moça. Às vezes chegava a dormir com a
sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se
transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas se comprazia
na evocação.
(...)
Era o afloramento súbito da
namorada (...).
ANÍBAL MACHADO
A morte da
porta-estandarte e Tati, a garota e outras histórias. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1976.
* Interregno: intervalo
9.
(Uerj 2012) No texto, o tempo funciona
de duas maneiras no relato dos acontecimentos.
O trecho abaixo exemplifica uma delas:
Durante mais de trinta
anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como burro
ensinado em frente à casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e
pontual, o velho funcionário. (ref. 1)
Indique a noção do tempo que caracteriza
este trecho. Transcreva, também, uma passagem do texto que revele outra
concepção do tempo, justificando sua escolha.
Resposta:
Trata-se de tempo
cronológico, pois o trecho citado apresenta relato de ações marcado pela ordem
natural dos acontecimentos, ou seja, delimitado pelos anos, dias e horas,
desencadeando uma sequência linear dos fatos. No entanto, existem outras
passagens do texto que evidenciam o tempo psicológico, voltado para os
elementos de ordem sentimental do personagem, revelado pelas emoções, pela
imaginação e pelas lembranças do passado: “Atirou-se de bruços na cama. E
sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de há quinze
anos... Foi andando para o passado... (...) Aí parou”, “Toda vez que pensava nela,
o longo e inexpressivo interregno do Ministério que chegava a confundir-se com
a duração definitiva de sua própria vida apagava-se-lhe de repente da memória.
O tempo contraía-se”, “Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de
idade, a acompanhar a procissão que ela seguia cantando”.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Natal
Jesus nasceu! Na abóbada infinita
Soam cânticos vivos de alegria;
E toda a vida universal palpita
Dentro daquela pobre estrebaria...
Não houve sedas, nem cetins, nem rendas
No berço humilde em que nasceu Jesus...
Mas os pobres trouxeram oferendas
Para quem tinha de morrer na Cruz.
Sobre a palha, risonho, e iluminado
Pelo luar dos olhos de Maria,
Vede o Menino-Deus, que está cercado
Dos animais da pobre estrebaria.
Não nasceu entre pompas reluzentes;
Na humildade e na paz deste lugar,
Assim que abriu os olhos inocentes,
Foi para os pobres seu primeiro olhar.
No entanto, os reis da terra, pecadores,
Seguindo a estrela que ao presepe os guia,
Vêm cobrir de perfumes e de flores
O chão daquela pobre estrebaria.
Sobem hinos de amor ao céu profundo;
Homens, Jesus nasceu! Natal! Natal!
Sobre esta palha está quem salva o mundo,
Quem ama os fracos, quem perdoa o Mal!
Natal! Natal! Em toda Natureza
Há sorrisos e cantos, neste dia...
Salve, Deus da Humildade e da Pobreza,
Nascido numa pobre estrebaria!
OLAVO BILAC
In: BUENO, Alexei (org.). Olavo
Bilac: obra reunida.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
10.
(Uerj 2012) Vede o Menino-Deus, que
está cercado (v. 11)
As formas verbais deste verso modificam a
representação do fato relatado, já que nas duas primeiras estrofes predomina o
tempo passado dos verbos.
Explicite o efeito estilístico causado pelo
emprego de cada uma dessas formas verbais: uma no modo imperativo e outra no
presente do indicativo.
Resposta:
Os termos verbais “vede” e “está”
interrompem o fato relatado anteriormente nas duas primeiras estrofes do poema.
Assim, com o modo imperativo, o enunciador dirige-se aos homens, convocando-os
a olhar o Menino-Deus. Com o presente do indicativo, o enunciador torna a cena
atual e viva, como se ela se desenrolasse diante das pessoas que ali estão
presentes.
Bons estudos!
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