sexta-feira, 29 de março de 2013

Revisão de literatura 1 - Questões discusivas com gabarito comentado










1. (Pucrj 2013)  Texto 1
Apesar de consideradas pela crítica, durante muito tempo, uma manifestação menor da literatura, as narrativas de viagem viveram momentos de glória no passado. Inúmeros escritores se dedicaram ao gênero, e eram muitos os leitores aficionados pelos relatos de aventuras. Na forma de diários, memórias ou simplesmente impressões de viagens, os textos surgiam aos borbotões, nos séculos XVIII e XIX, ora inspirados pelo Velho, ora pelo Novo Mundo, expressando sempre o olhar fascinado, a curiosidade e o desejo do viajante de deixar registrada a sua experiência, que ele julgava ímpar.
Na Europa, os destinos mais buscados eram a Alemanha, a Itália e a Espanha, fosse pela mitologia, pela glória passada ou pela profusão de ruínas históricas. 1E não importava se a viagem durasse semanas, meses ou anos; interessava relatá-la e assim se inscrever na tradição do gênero. Dentre os mais ilustres viajantes, Goethe, Mme. de Stäel, Victor Hugo, Michelet, Lamartine e Mérimée foram autores que incentivaram outros escritores a também excursionar e a escrever sobre as novas terras.
A América foi igualmente pródiga em inspirar viajantes - em sua maioria pintores, botânicos, naturalistas, arqueólogos ou simples aventureiros -, ainda que a maioria não tivesse pretensões literárias e quisesse apenas fazer anotações acerca da geografia, fauna e flora tropical das novas terras.
Octavio Ianni, em A metáfora da viagem, afirma que a história dos povos “está atravessada pela viagem”, não importa se real (se ocorre o deslocamento geográfico, espacial e temporal), ou metafórica (sem o deslocamento físico, mas apenas o sensível ou sensorial), pois toda sociedade trabalha a viagem, “seja como modo de descobrir o ‘outro’, seja como modo de descobrir o ‘eu’”. A viagem destina-se, portanto, a ultrapassar fronteiras, a demarcar as diferenças e as semelhanças entre os povos.
E, se consideramos as condições em que os deslocamentos eram realizados, as enormes distâncias, o desconforto de navios, carros de bois e ferrovias, além dos perigos de toda natureza a que estavam sujeitos, causa espanto encontrar tantas mulheres, dentre os viajantes, que ousaram deixar a segurança de seus lares, suas famílias e enfrentar o preconceito, as novas fronteiras, o desconhecido.

DUARTE, Constância Lima; MUZZART, Zahidé Lupinacci. Pensar o outro ou quando as mulheres viajam. Revista Estudos Feministas. vol.16 n.3. Florianópolis. Setembro/dezembro. 2008. Apresentação. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2008000300018&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 ago. 2012.

Texto 2
Espalham-se, por fim, as sombras da noite.
O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia, consubstanciado como está com a solidão, para, relanceia os olhos ao derredor de si e, se no lagar pressente alguma aguada, por má que seja, apeia-se, desencilha o cavalo e reunindo logo uns gravetos bem secos, tira fogo do isqueiro, mais por distração do que por necessidade.
Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz do espírito ou o bem-estar do corpo. Nem sequer monologa, como qualquer homem acostumado a conversar.
1Raros são os seus pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao término da viagem.
No dia seguinte, quando aos clarões da aurora acorda toda aquela esplêndida natureza, recomeça ele a caminhar, como na véspera, como sempre.
Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. 2Dá-lhe o Sol, quando muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção, quando algum sinal mais particular pode servir-lhe de marco miliário na estrada que vai trilhando.

TAUNAY, Visconde de. Inocência. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000002.pdf>. Acesso em: 20 set. 2012.


a) Com base na frase abaixo, extraída do texto 1, determine a diferença que se estabelece entre os dois empregos da palavra se.
“E não importava se a viagem durasse semanas, meses ou anos; interessava relatá-la e assim se inscrever na tradição do gênero.” (ref. 1)
b) Reescreva o período abaixo, fazendo as alterações necessárias para atender ao que é proposto.
“Raros são os seus pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao término da viagem.” (Texto 2 – ref. 1)
Raros eram ___________________________________________________________.
c) Com relação à passagem “Dá-lhe o Sol, quando muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção” (Texto 2 – ref. 2), explique por que o verbo dar encontra-se flexionado na 3ª pessoa do singular.


Resposta:

a) No seu primeiro emprego a palavra se é conjunção integrante, introduz uma oração subordinada substantiva e traz o sentido de possibilidade. No segundo emprego, a palavra se é pronome pessoal oblíquo com valor reflexivo.
b) Raros eram os seus pensamentos: ou rememorava as léguas que andara/tinha andado, ou computava as que tinha que vencer para chegar ao término da viagem.
c) O verbo encontra-se na 3ª pessoa do singular para concordar com o sujeito “o Sol”.



  
2. (Fuvest 2013)  Leia com atenção o trecho de Til, de José de Alencar, para responder ao que se pede.

[Berta] — Agora creio em tudo no que me disseram, e no que se pode imaginar de mais horrível. Que assassines por paga a quem não te fez mal, que por vingança pratiques crueldades que espantam, eu concebo; és como a suçuarana, que às vezes mata para estancar a sede, e outras por desfastio entra na mangueira e estraçalha tudo. Mas que te vendas para assassinar o filho de teu benfeitor, daquele em cuja casa foste criado, o homem de quem recebeste o sustento; eis o que não se compreende; porque até as feras lembram-se do benefício que se lhes fez, e têm um faro para conhecerem o amigo que as salvou.
[Jão] — Também eu tenho, pois aprendi com elas; respondeu o bugre; e sei me sacrificar por aqueles que me querem. Não me torno, porém, escravo de um homem, que nasceu rico, por causa das sobras que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro. Não foi por mim que ele fez isso; mas para se mostrar ou por vergonha de enxotar de sua casa a um pobre-diabo. A terra nos dá de comer a todos e ninguém se morre por ela.
[Berta] — Para ti, portanto, não há gratidão?
[Jão] — Não sei o que é; demais, Galvão já pôs-me quites dessa dívida da farinha que lhe comi. Estamos de contas justas! acrescentou Jão Fera com um suspiro profundo.

a) Nesse trecho, Jão Fera refere-se de modo acerbo a uma determinada relação social (aquela que o vinculara, anteriormente, ao seu “benfeitor”, conforme diz Berta), revelando o mal-estar que tal relação lhe provoca. Que relação social é essa e em que consiste o mal-estar que lhe está associado?
b) A fala de Jão Fera revela que, no contexto sócio-histórico em que estava inserido, sua posição social o fazia sentir-se ameaçado de ser identificado com um outro tipo social — identificação, essa, que ele considera intolerável. De que identificação se trata e por que Jão a abomina? Explique sucintamente.  


Resposta:

a) A sociedade retratada em “Til” está estruturada basicamente em duas camadas sociais: os grandes latifundiários e os escravos com a gente humilde do campo. Os personagens que habitam na Fazenda das Palmas estão submetidos ao poder de Luís Galvão, representante de uma aristocracia rural a quem todos devem obrigações e favores. Jão Fera reconhece as limitações impostas pela sua condição de agregado que vive da caridade do seu “benfeitor” e se vê obrigado a uma subserviência humilhante para poder sobreviver.
b) Jão Fera não admitia ser identificado com o escravo negro, por isso prefere o trabalho de capanga dos ricos ao do trabalho na lavoura, típico da ralé.  



  
3. (Unicamp 2013)  Em uma passagem célebre de Memórias de um sargento de milícias, pode-se ler, a respeito da personagem de Leonardo Pataca, que “o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo”. (Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978, p. 19.)

a) De que maneira a passagem acima explicita o lugar peculiar ocupado pelo livro de Manuel Antônio de Almeida no Romantismo brasileiro?
b) Como essa peculiaridade do livro se manifesta, de maneira geral, na caracterização das personagens e na construção do enredo?


Resposta:

a) A forma irônica como o narrador se refere a Leonardo Pataca (“o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo”) estabelece uma ruptura com as características do estilo romântico predominante na época da publicação dos folhetins, que seriam reunidos mais tarde em livro sob o título “Memórias de um sargento de milícias”. O excesso de emotividade típico do Romantismo é ridicularizado quando o narrador usa o termo “babão” para caracterizar a pessoa que se declara fortemente apaixonada por outra. Desta forma, a obra apresenta elementos excêntricos ao painel literário do Romantismo brasileiro.
b) Muitas personagens são alegorias, representações simbólicas do tipo de gente da época, classe média-baixa que tenta driblar as dificuldades de sobrevivência do dia a dia com pequenas contravenções morais e éticas, ao contrário do que acontece no Romantismo convencional em que o protagonista é de origem social elevada e tem comportamento moral e ético irrepreensíveis. A supressão de etapas narrativas, oscilação de foco narrativo, a presença de metalinguagem, o diálogo com o leitor e o uso de linguagem objetiva de cunho jornalístico permitem classificar esta obra como uma novela de tom humorístico, crônica de costumes do Rio Colonial, na época de D. João VI.




TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Inocência

Depois das explicações dadas ao seu hóspede, sentiu-se o mineiro mais despreocupado.
— Então, disse ele, se quiser, vamos já ver a nossa doentinha.
— Com muito gosto, concordou Cirino.
E, saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cercas e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a magnífico laranjal, naquela ocasião todo pontuado das brancas e olorosas flores.
1— Neste lugar, disse o mineiro apontando para o pomar, todos os dias se juntam tamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dos meus pecados. Nocência gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. É uma menina esquisita...
Parando no limiar da porta, continuou com expansão:
2— Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é que 3um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler? ... Que ideia! Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto. 4E se o Sr. visse os modos que tem com os bichinhos?! ... Parece que está falando com eles e que os entende... (...) Quando Cirino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quase noite, de maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pôde lobrigar, além de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. (...)
Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e voltou-se para os que entravam.
— Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vem curar-te de vez.
— Boas noites, dona, saudou Cirino.
Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que o jovem, no seu papel de médico, se sentava num escabelo junto à cama e tomava o pulso à doente.
Caía então luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte do colo e da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por trás da nuca.
Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza deslumbrante.
Do seu rosto, irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces.
Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado.
Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressaltava um ou outro sinal de nascença.
Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativo para sentir a mão fria e um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente.

VISCONDE DE TAUNAY
Inocência. São Paulo: Ática, 2011.

graúna – pássaro de plumagem negra, canto melodioso e hábitos eminentemente sociais
livro de horas – livro de preces
secundou – respondeu
lavrados – na província de Mato Grosso, colares de contas de ouro e adornos de ouro e prata
lobrigar – enxergar
escabelo – assento
facultativo – médico


4. (Uerj 2013)  um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... (ref. 3)
E se o Sr. visse os modos que tem com os bichinhos?! ... (ref. 4)

As formas verbais sublinhadas estão empregadas nos mesmos tempo e modo gramaticais, mas diferem pelo efeito de sentido que produzem.
Identifique o tempo e modo gramaticais comuns a essas formas e aponte aquela em que não há expressão de tempo, e sim de uma hipótese.  


Resposta:

Os termos verbais “ensinasse” e “visse” apresentam-se conjugados no pretérito imperfeito do subjuntivo, mas apenas o último expressa hipótese.



  
5. (Uerj 2013)  Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que ideia! Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço (ref. 2)

O trecho acima faz referência a crenças e valores de Inocência e de seu pai, Pereira.
Apresente dois traços do comportamento de cada um desses personagens que revelam a diferença de valores entre eles. Em seguida, indique a modalidade de romance em que tais personagens se inserem.  


Resposta:

Inocência era ousada, vaidosa, queria aprender a ler e tinha a mente cheia de sonhos. Pereira era repressor e autoritário e reprovava os desejos da filha por achá-los esquisitos. Os personagens estão inseridos no contexto do romance regionalista.



  
6. (Ufg 2012)  O poema I – Juca Pirama, de Gonçalves Dias, e o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, recriam espaços e períodos da Geografia e da História brasileiras já distantes do contexto em que foram produzidos.

Considerando esta afirmação, responda:
a) Que espaços e períodos são recriados no poema de Gonçalves Dias e no romance de Manuel Antônio de Almeida?
b) Em relação ao modo como os autores reconstroem o passado que lhes serve de referência, que característica recorrente na estética romântica está presente no poema I – Juca Pirama e ausente no romance Memórias de um sargento de milícias?


Resposta:

a) No poema de Gonçalves Dias, são recriadas as selvas e as florestas brasileiras do período colonial e pré-colonial, séculos XVI e XVII; no romance de Manuel Antônio de Almeida, o Rio de Janeiro de Dom João VI, no século XIX.
b) Trata-se da idealização, ou seja, a descrição idealizada do tempo, espaço e personagens.



  
7. (Ufg 2012)  Leia o trecho a seguir.

X

Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!”

“Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mi.

“Eu disse comigo: que infâmia d'escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”

Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

DIAS, Gonçalves. I - Juca Pirama seguido de Os Timbiras. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2007. p. 28.

A respeito do canto transcrito, correspondente à parte final de I – Juca Pirama, de Gonçalves Dias, responda:
a) Por que o guerreiro Tupi, prisioneiro dos Timbiras no passado, parece ainda mais heroico na fala do velho que narra a história do que ao longo do poema?
b) Que efeito produz a sentença “Meninos, eu vi!”, repetida duas vezes no poema?


Resposta:

a) Por se tratar de um vencedor que destaca a coragem do guerreiro Tupi, o narrador confere ainda mais valor às ações do guerreiro vencido.
b) A repetição da frase “Meninos, eu vi” confere autoridade ao relato, uma vez que o narrador tinha sido testemunha dos fatos narrados.



  
8. (Unicamp 2012)  Os trechos a seguir foram extraídos de Memórias de um sargento de milícias e Vidas secas, respectivamente.

O som daquela voz que dissera “abra a porta” lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e ideias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às ideias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.

(Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978, p. 21.)

Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano:
– Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira:
– Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.

(Graciliano Ramos, Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 28.)

a) Que semelhanças e diferenças podem ser apontadas entre o Major Vidigal, de Memórias de um sargento de milícias, e o soldado amarelo, de Vidas secas?
b) Como essas semelhanças e diferenças se relacionam com as características de cada uma das obras?


Resposta:

a) Tanto o Major Vidigal quanto o soldado amarelo representavam a autoridade num círculo social carente de recursos jurídicos que limitassem o seu poder, por isso impunham a ordem de forma arbitrária, segundo os seus próprios juízes de valor. No entanto, o Major Vidigal fazia-o de forma mais moderada e, algumas vezes, justa, enquanto o soldado amarelo infringia o código de boa conduta e abusava do poder para humilhar as pessoas.
b) “Memórias de um sargento de milícias” é uma obra descompromissada com crítica social ou denúncia da realidade da época. Trata-se de uma crônica de costumes em que os personagens de classe média baixa tentam driblar as dificuldades do cotidiano com atitudes nem sempre muito éticas ou regidas por princípios morais. Já “Vidas secas” pertence ao neorrealismo da literatura brasileira, uma obra que pretende denunciar a realidade miserável do nordestino brasileiro, oprimido pelo meio inóspito em que vive e pelo sistema político a que está submetido. Assim, o Major Vidigal, terror de todos os malandros e baderneiros da época, age movido pela necessidade de impor a ordem, embora nem sempre os seus atos sejam modelo de boa conduta moral. O soldado amarelo, símbolo de repressão e do autoritarismo pelo qual é comandado (ditadura Vargas), é oportunista e medroso, pois não é forte quando se sabe sozinho, em lugar que não domina ou longe da proteção da ditadura, como quando, perdido no meio da caatinga, se acovarda diante do gesto ameaçador de Fabiano.



  
9. (Ufmg 2011)  Leia estes trechos:

Trecho 1

            O Desertor enfim cansado chega
            À presença do Tio formidável,
            E a teimosa Ignorância, que se aferra,
            E que afirma, somente porque afirma,
            O coração de novo lhe endurece.
            A sofrer o trabalho dos estudos
            O Tio o anima, roga, e ameaça,
            Mas o Herói inflexível só responde,
            Que não há de mudar do seu projeto.

ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. O desertor: poema herói-cômico. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 127.

Trecho 2
            – Bom, já vejo que estás adiantado na moral do século; julgas-te, porém, preparado para entrar e aparecer na política?...
            – Estou a par de todos os conhecimentos humanos; cheguei há um mês de Paris.
            – Melhor ainda: tens as duas principais qualidades que são indispensáveis ao homem que quer subir: és impostor e atrevido.
            – Obrigado, meu tio.
            – Mas cumpre que estudes ainda.
            – Convenho: estou pronto a voltar para França.
            – Não; não é lá que deves estudar agora.
            – Então onde?...
            – Em um grande livro.
            – Qual?...
            – No livro da tua terra.

MACEDO, Joaquim Manuel de. A carteira de meu tio. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 19.


Considerando a relação que mantêm com os respectivos tios, compare os protagonistas desses trechos.


Resposta:

Na obra “O Desertor”, de Silva Alvarenga, vemos o personagem Gonçalo com medo da reação do tio perante a  decisão de abandonar os estudos. Com as reformas pombalinas na estrutura universitária, o personagem seria mais exigido e isso incomodava-o, por isso a deserção. O tio, ao contrário, dava importância aos estudos e tentava convencê-lo a prosseguir o curso, inclusive com ameaças.
Na obra “A carteira de meu tio”, de Joaquim Manuel de Macedo, o personagem recebe instruções do tio para ingressar na política e obter sucesso na carreira, independentemente dos valores morais indignos que tal profissão exige, como ser “impostor e atrevido”. É indolente, não gosta de tarefas que exijam muito, da mesma forma que Gonçalo, mas mostra-se mais receptivo que aquele à nova ideia e manifesta intenção de seguir as recomendações que o tio experiente lhe vai apresentando.



  
10. (Unicamp 2011)  Pensando nos pares amorosos, já se afirmou que “há n’O cortiço um pouco de Iracema coada pelo Naturalismo.”
(Antonio Candido, “De cortiço em cortiço”, em O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, p.142.)

Partindo desse comentário, leia o trecho abaixo e responda às questões.

            O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.       (...) Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber.
            De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade. (...) E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o pires, e com a outra a xícara, ajudava-o a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam, cintilantes de impaciência no antegozo daquele primeiro enlace.
            Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, num frenesi de desejo doido.

(Aluísio Azevedo, O Cortiço. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 498 e 581.)

a) Na descrição acima, identifique dois aspectos que permitem aproximar Rita Baiana de Iracema, mostrando os limites dessa semelhança.
b) Identifique uma semelhança e uma diferença entre Jerônimo e Martim.


Resposta:

a) Ambas são representantes da mulher brasileira, pois Iracema era uma índia nativa, detentora de sensualidade que atrai o colonizador Martim, e Rita Baiana, uma mulata que também provoca uma série de impressões em Jerônimo, imigrante português. Ambas representam “o grande mistério, a síntese das impressões” que eles receberam “chegando aqui”. No entanto, enquanto Iracema é descrita por Alencar como uma espécie de “vestal” índia que se vai sacrificar na entrega amorosa, Rita Baiana é apresentada de forma animalesca (“movimentos de cobra amaldiçoada”, “a lagarta viscosa”, “a muriçoca doida”).


b) Ambos são portugueses, sentem-se atraídos pela beleza e sensualidade da mulher brasileira e sucumbem ao seus encantos. No entanto, Martim submete Iracema que abandona a sua tribo para o seguir e viver com ele, como heroína romântica que morre pelo seu grande amor, enquanto Jerônimo abandona esposa, filha e trabalho, transformando-se em assassino e alcoólatra. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário