1. (Unicamp 2012) O texto abaixo é parte de uma campanha
promovida pela ANER (Associação Nacional de Editores de Revistas).
Surfamos a Internet, Nadamos em revistas
A Internet empolga. Revistas envolvem.
A Internet agarra. Revistas abraçam.
A Internet é passageira. Revistas são permanentes.
E essas duas mídias estão crescendo.
Um dado que passou quase despercebido em meio ao barulho da Internet foi
o fato de que a circulação de revistas aumentou nos últimos cinco anos. Mesmo
na era da Internet, o apelo das revistas segue crescendo. Pense nisto: o Google
existe há 12 anos. Durante esse período, o número de títulos de revistas no
Brasil cresceu 234%. Isso demonstra que uma mídia nova não substitui uma mídia
que já existe. Uma mídia estabelecida tem a capacidade de seguir prosperando,
ao oferecer uma experiência única. É por isso que as pessoas não deixam de
nadar só porque gostam de surfar.
(Adaptado de Imprensa, n. 267,
maio 2011, p. 17.)
a) O verbo surfar pode
ser usado como transitivo ou intransitivo. Exemplifique cada um desses usos com
enunciados que aparecem no texto da campanha. Indique, justificando, em qual
desses usos o verbo assume um sentido necessariamente figurado.
b) Que relação pode ser
estabelecida entre o título da campanha e o trecho reproduzido a seguir? Como
essa relação é sustentada dentro da campanha?
A Internet empolga. Revistas envolvem.
A Internet agarra. Revistas abraçam.
A Internet é passageira. Revistas são permanentes.
Resposta:
a) O verbo “surfar” é usado
como transitivo direto no título do texto da campanha e em sentido figurado,
pois está relacionado à capacidade de transição entre sites acessíveis na internet. Na última frase, o mesmo verbo é
usado como intransitivo e apresenta significado literal, pois pertence ao mesmo
campo lexical da palavra “nadar”.
b) No trecho do enunciado,
os termos verbais “empolga”, “agarra” e “passageira” associados à palavra
“internet” sugerem uma ação intensa, apaixonante, mas efêmera, ao contrário do
que acontece com os que estão ligados à palavra “revista”, menos intensos, mas
mais duradouros (“envolvem”, ”abraçam”, “são permanentes”). O mesmo é sugerido
no título, já que “surfar” é atividade esportiva moderna e “nadar”, uma
modalidade tradicional.
2. (Unicamp 2012) Os trechos abaixo foram
extraídos de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se
casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,
depois um quatuor...
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos
livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O
que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que
não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos
me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os
generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as
notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de
um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes
também preencher as minhas.
(Machado
de Assis, Dom Casmurro. Cotia: Ateliê Editorial, 2008, p. 213.)
a) Como a narrativa de Bento
Santiago pode ser relacionada com a afirmação de que a verossimilhança é “muita
vez toda a verdade”?
b) Considerando
essa relação, explicite o desafio que o segundo trecho propõe ao leitor.
Resposta:
a) Segundo Bento Santiago,
a verossimilhança, harmonia entre elementos fantasiosos ou imaginários que
garantem a coerência da narrativa, é vista, muitas vezes, como verdade absoluta
e inquestionável. Isto significa que o ponto de vista de quem escreve pode ser
tomado como verdadeiro, sem levar em conta a subjetividade do narrador, como
Bento Santiago que, convencido da traição de Capitu, induz o leitor a aceitar a
sua tese.
b) No segundo trecho, o
narrador desafia o leitor a descobrir nas entrelinhas da narrativa as
verdadeiras intenções dos personagens ou a ambiguidade das suas ações, de
maneira a completar tudo aquilo que não foi dito.
3. (Unicamp 2012) O excerto abaixo foi extraído do poema Balada
Feroz, de Vinícius de Moraes.
(...) Lança o teu poema inocente sobre o rio venéreo engolindo as
cidades
Sobre os casebres onde os escorpiões se matam à visão dos amores
miseráveis
Deita a tua alma sobre a podridão das latrinas e das fossas
Por onde passou a miséria da condição dos escravos e dos gênios. (...)
Amarra-te aos pés das garças e solta-as para que te levem
E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as narinas,
lança-te sobre a cidade mortuária
Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um velho canhão
soterrado, volta
E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que comem as fezes
verdes das estradas.
(...)
Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o ouro
E para que apodreçam como porcos, injeta-os de pureza!
E com todo esse pus, faz um poema puro
E deixa-o ir, armado cavaleiro, pela vida
E ri e canta dos que pasmados o abrigarem
E dos que por medo dele te derem em troca a mulher e o pão.
Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta
E dança, porque dançar é o destino da pureza
Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno
Carne morta ou carne viva – toma! Agora falo eu que sou um!
(Vinícius de Moraes, Antologia
Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 51-53.)
a) Como é próprio do modernismo
poético, os versos acima contrariam a linguagem mais depurada e as imagens mais
elevadas da lírica tradicional. Como podemos definir as imagens predominantes
em Balada feroz? A que se referem tais imagens?
b) Qual é o papel da poesia
e do poeta diante da realidade representada?
Resposta:
a) No poema “Balada feroz”,
o eu lírico descreve um mundo de horror com linguagem agressiva (“rio venéreo”,
“amores miseráveis”, “podridão das latrinas e das
fossas”, “a decomposição dos campos de guerra”) e termos aversivos (
“tumefações”,”fezes verdes”,”pus”).
b) Seria missão do poeta
transformar o mundo de destruição e morte em outro em que prevalecessem ideais
de solidariedade, justiça, ética e princípios morais a que o fazer poético deve
estar sempre vinculado (“faz um poema puro /E deixa-o ir, armado cavaleiro,
pela vida", “Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o
ouro”).
4.
(Unicamp 2012) Coloque-se no lugar dos estudantes
de uma escola que passou a monitorar as páginas de seus alunos em redes
sociais da internet (como o Orkut, o Facebook e o Twitter), após um evento
similar aos relatados na matéria reproduzida abaixo. Em função da polêmica
provocada pelo monitoramento, você resolve escrever um manifesto e
recebe o apoio de vários colegas. Juntos, decidem lê-lo na próxima reunião
de pais e professores com a direção da escola. Nesse manifesto, a ser
redigido na modalidade oral formal, você deverá necessariamente:
• explicitar o evento que motivou a direção
da escola a fazer o monitoramento;
• declarar e sustentar o que você e seus colegas
defendem, convocando pais, professores e alunos a agir em conformidade com o
proposto no documento.
Escolas monitoram o que aluno faz em rede social
Durante uma aula vaga em uma escola da
Grande São Paulo, os alunos decidiram tirar fotos deitados em colchonetes
deixados no pátio para a aula de educação física. Um deles colocou uma imagem
no Facebook com uma legenda irônica, em que dizia: vejam as aulas que temos na
escola. Uma professora viu a foto e avisou a diretora. Resultado: o aluno teve
de apagá-la e todos levaram uma bronca. O caso é um exemplo da luta que as
escolas têm travado com os alunos por conta do uso das redes sociais. Assuntos
relativos à imagem do colégio, casos de bullying virtual e até mensagens
em que, para a escola, os alunos se expõem demais, estão tendo de ser apagados
e podem acabar em punição. Em outra instituição, contam os alunos, um casal foi
suspenso depois de a menina pôr no Orkut uma foto deles se beijando nas
dependências da escola. As escolas não comentaram os casos. Uma delas diz que
só pediu para apagar a foto porque houve um "tom ofensivo". Como
outras escolas consultadas, nega que monitore o que os alunos publicam nos
sites.
Exercícios - Como professores e alunos
são "amigos" nas redes sociais, a escola tem acesso imediato às
publicações. Foi o que aconteceu com um aluno do ABC paulista. Um professor
soube da página que esse aluno criou com amigos no Orkut. Nela, resolviam
exercícios de geografia – cujas respostas acabaram copiadas por colegas. O
aluno teve de tirá-la do ar. O caso é parecido com o de uma aluna de 15 anos do
Rio de Janeiro obrigada a apagar uma comunidade criada por ela no Facebook para
a troca de respostas de exercícios. Ela foi suspensa. Já o aluno do ABC
paulista não sofreu punição e o assunto ética na internet passou a ser
debatido em aula.
Transformar o problema em tema de discussão
para as aulas é considerado o ideal por educadores. "A atitude da escola
não pode ser policialesca, tem que ser preventiva e negociadora no sentido de
formar consciência crítica", diz Sílvia Colello, professora de pedagogia
da USP.
(Adaptado de Talita Bedinelli & Fabiana Rewald, Folha de S. Paulo,
19/06/2011.)
Resposta:
Um manifesto deve apresentar opinião crítica
relativa ao assunto visado seguida de justificativa. Trata-se de um texto de
natureza dissertativa e persuasiva, uma declaração pública que tem como
objetivo alertar para alguma questão específica ou fazer uma denúncia pública
de um problema que está ocorrendo, visando mobilizar as pessoas para uma
determinada ação. Deve apresentar título, identificação e análise do problema,
argumentos que fundamentem o ponto de vista do autor com local, data e assinatura.
No caso, o tema deveria abordar questão relativa ao monitoramento exercido
pelas direções escolares do acesso de funcionários, professores e alunos a
redes da internet. Por motivos que acreditam justificáveis, as direções ou
responsáveis pedagógicos entram muitas vezes em conflito com os interesses de
alunos e professores, gerando polêmicas que só podem ser resolvidas através do
diálogo na busca de soluções que intermedeiem os vários interesses envolvidos.
Se os diretores justificam esse monitoramento pelos benefícios que trazem
relativamente à obediência a regras que consideram essenciais, alunos,
professores e funcionários podem sentir-se invadidos e ver nesse monitoramento
uma restrição ao direito à privacidade ou às facilidades que as novas tecnologias
lhes oferecem.
5. (Unicamp 2011) Quando vitaminas atrapalham
Consumir
suplementos de vitaminas depois de praticar exercícios físicos pode reduzir a
sensibilidade à insulina, o hormônio que conduz a glicose às células de todo o
corpo. Temporariamente, um pouco de
estresse oxidativo – processo combatido por algumas vitaminas e que danifica as
células – ajuda a evitar o diabetes tipo 2, causado pela resistência à
insulina, concluíram pesquisadores das universidades de Jena, na Alemanha, e
Harvard, nos Estados Unidos. Desse estudo, publicado em maio na PNAS,
participaram 40 pessoas, metade delas com treinamento físico prévio, metade
sem. Os dois grupos foram divididos em subgrupos que tomaram ou não uma
combinação de vitaminas C e E .Todos os subgrupos praticaram exercícios durante
quatro semanas e passaram por exames de avaliação de sensibilidade da glicose à
insulina antes e após esse período. Apenas exercícios físicos, sem doses
adicionais de vitaminas, promovem a longevidade e reduzem o diabetes tipo 2. Ao
contrário do que se pensava, os resultados negam que o estresse oxidativo seja
um efeito colateral indesejado da atividade física vigorosa: ele é na verdade
parte do mecanismo pelo qual quem se exercita é mais saudável. A conclusão é
clara: nada de antioxidantes depois de correr.
(Adaptado de
“Quando vitaminas atrapalham”. Revista Pesquisa FAPESP 160, p.40, junho
de 2009.)
a) Por se tratar de um texto de divulgação
científica, apresenta recursos linguísticos próprios a esse gênero. Quais são eles?
Transcreva dois trechos em que esses recursos estão presentes.
b) O experimento em questão concluiu que as
vitaminas atrapalham. Explique como os pesquisadores chegaram a essa conclusão.
Resposta:
a) O artigo
pretende comprovar a tese de que o consumo de vitaminas após exercícios físicos
apresenta efeitos indesejáveis. Por se tratar de um texto científico, foi usada
a função referencial da linguagem, também chamada de denotativa ou informativa,
a fim de passar uma informação objetiva e impessoal. Neste gênero, é valorizado
o objeto ou a situação de que trata a mensagem sem manifestações pessoais ou
persuasivas, o que pode ser comprovado no uso de termos técnicos relacionados
com saúde e biologia (“insulina, o hormônio que conduz a glicose às células de
todo o corpo”, “o diabetes tipo 2, causado pela resistência à insulina”).
b) Os
pesquisadores distribuíram 40 pessoas em dois grupos: metade delas sujeitas
previamente a atividades físicas e a outra metade sem esse tipo de exercícios.
Os dois grupos foram então subdivididos em dois e apenas a um deles foi
ministrada uma combinação de vitaminas A e E. Durante quatro semanas, todos
praticaram atividades físicas, tendo sido avaliadas as respectivas taxas de
sensibilidade da glicose à insulina, antes e depois do experimento. Perante o
resultado, comprovou-se que o consumo de vitaminas pode inibir a sensibilidade
à insulina.
6. (Unicamp 2011) Os dicionários de meu pai
Pouco
antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa
preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco
Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes
volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai
mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi
mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. E por um
bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções,
sem falar das horas que eu o folheava à toa. Palavra puxa palavra e
escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo
(desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado é
que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus
dedos. Encostei-o na estante das
relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo
dicionário em encadernação de percalina. Com esse livro escrevi novas canções e
romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar
sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um
dicionário analógico de reserva. Encontrei
dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de
vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de
exemplares, e ainda rematei o último à venda na Amazon.com antes que algum
aventureiro o fizesse. Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento,
exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da
língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me
consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, busanos,
cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros).
Hoje
sou surpreendido pelo anúncio dessa nova edição do dicionário analógico de
Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha
propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se
para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável,
dilacerante, miseranda) notícia.
(Adaptado de
Francisco Buarque de Hollanda, em Francisco F. dos S. Azevedo, Dicionário
Analógico da Língua Portuguesa: ideias afins/thesaurus. 2ª edição
atualizada e revista, Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.)
a) A partir do texto de Chico Buarque que
introduz o dicionário analógico recentemente reeditado, proponha uma definição
para esse tipo de dicionário.
b) Mostre a partir de que
pistas do texto sua definição foi elaborada.
Resposta:
a) O
dicionário analógico é aquele que apresenta, predominantemente, os sinônimos
das palavras, ou seja, reúne as palavras por campos semânticos.
b) O contexto
e o fato de o autor insistir em colocar entre parênteses os sinônimos de
algumas palavras (“passatempo”, “monopólio” e “traças”) permitem deduzir que o
termo se refere a um dicionário desse tipo.
7.
(Unicamp 2011) Leia os seguintes trechos
de O cortiço e Vidas secas:
O
rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se
não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o
cortiço. (...). Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de
plantas rasteiras que mergulhavam os pés vigorosos na lama preta e nutriente da
vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a
terra.
(Aluísio
Azevedo, O cortiço. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguillar, 2005, p. 462.)
Fabiano
ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família
morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um
juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos
sofrimentos passados esmorecera. (...)
-
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se,
notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar
só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar
coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os
cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios,
descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou
em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
-
Você é um bicho, Fabiano.
Isto
para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.
Chegara
naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando seu cigarro
de palha.
-
Um bicho, Fabiano. (...)
Agora
Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho,
entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado.
(Graciliano Ramos, Vidas secas. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2007, p.18-19.)
a) Ambos os trechos são narrados em terceira
pessoa. Apesar disso, há uma diferença de pontos de vista na aproximação das
personagens com o mundo animal e vegetal. Que diferença é essa?
b) Explique como essa
diferença se associa à visão de mundo expressa em cada romance.
Resposta:
a) Aluísio Azevedo,
expoente da vertente naturalista do Realismo brasileiro no final século XIX,
usa termos científicos para apresentar os personagens de “O Cortiço” sob uma
visão determinista, realçando com objetividade a influência do meio no comportamento
do homem (“fermentação sanguínea”, ”na lama preta e nutriente da vida, o prazer
animal de existir”). Graciliano Ramos, inserido no Neorrealismo do 2º Tempo do
Modernismo brasileiro, usa recursos como o discurso indireto-livre para
retratar o mundo psicológico de Fabiano, o que resulta numa aproximação com o
personagem por revelar as suas inquietudes e conflitos.
b) Na obra de Graciliano Ramos existe intenção de denúncia ao abordar uma
família de retirantes, a sua vida subumana diante de problemas sociais como a
seca, a pobreza, e a exploração dos trabalhadores no latifúndio do sertão
brasileiro. Enquanto que em “O Cortiço” os personagens se revelam através de um
comportamento semelhante ao do animal nas suas atitudes primárias e
instintivas, descritas em linguagem objetiva e distante, em “Vidas Secas”, o
autor demonstra consciência social ao responsabilizar as condições adversas que
se abatem sobre eles, enfatizando, através da transcrição de monólogos, o
aspecto da precariedade da comunicação verbal que os isola do mundo ao redor.
8.
(Unicamp 2011) Leia a passagem seguinte,
de Capitães da areia:
Pedro
Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam fardos para o navio
holandês. Nas largas costas negras e mestiças brilhavam gotas de suor. Os
pescoços musculosos iam curvados sob os fardos. E os guindastes rodavam
ruidosamente.
Um
dia iria fazer uma greve como seu pai... Lutar pelo direito... Um dia um homem
assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a
sua história, como contavam a de seu pai. Seus olhos tinham um intenso brilho
na noite recém-chegada.
(Jorge Amado, Capitães
da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 88.)
a) Que consequências a descoberta de sua
verdadeira origem tem para a personagem de Pedro Bala?
b) Em que medida o trecho acima pode definir
o contexto literário em que foi escrito o romance de Jorge Amado?
Resposta:
a) Ao descobrir que o seu
pai tinha sido assassinado numa manifestação em defesa dos direitos dos estivadores
e que sempre se referiam a ele com admiração e respeito, Pedro Bala começa a
adquirir consciência ideológica e manifesta o desejo de seguir as pisadas do
pai, ou seja, tornar-se um líder revolucionário que lutaria contra as
injustiças sociais.
b) “Capitães da Areia” foi
publicado em 1937, momento em que o Brasil vivia a ditadura Vargas que reprimia
ideias comunistas a que eram associadas as lutas reivindicatórias de diversas
classes sociais.
9.
(Unicamp 2011) Leia os seguintes trechos
de Memórias de um sargento de milícias e Vidas secas, que
descrevem o estado de ânimo das personagens ao final de uma festa:
Acabado
o fogo, tudo se pôs em andamento, levantaram-se as esteiras, espalhou-se o
povo. D. Maria e sua gente puseram-se também em marcha para casa, guardando a
mesma disposição com que tinham vindo. Desta vez porém Luisinha e Leonardo, não
é dizer que vieram de braço, como este último tinha querido quando foram para o
Campo, foram mais adiante do que isso, vieram de mãos dadas muito familiar e
ingenuamente. Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão
aplicar ao Leonardo. Conversaram por todo o caminho como se fossem dois
conhecidos muito antigos, dois irmãos de infância, e tão distraídos iam que
passaram à porta da casa sem parar, e já estavam muito adiante quando os sios
de D. Maria os fizeram voltar. A despedida foi alegre para todos e
tristíssima para os dois.
(Manuel Antonio
de Almeida, Memória de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 2004,
Capítulo XX - “O fogo no Campo”, p. 71.)
Baleia
cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade
se enchera de suores que a desconcertavam. Sinha Vitória enxergava, através das
barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira, uma cama de verdade.
Fabiano
roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindo-lhe os olhos, o quengo
sobre as botinas de vaqueta.
Sonhava,
agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o tornava irreconhecível.
Fabiano se agitava, soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido,
pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões terríveis.
(Graciliano
Ramos, Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 82-83.)
a) Explique as diferenças do estado de ânimo
das personagens ao final dos dois episódios.
b) A partir dessa
diferença, explique o significado que as duas festas têm em cada um dos
romances.
Resposta:
a) De uma
maneira geral, as personagens de “Memórias de um Sargento de Milícias” estão
alegres com o passeio e voltam a suas casas felizes e bem-dispostas, apenas
Luisinha e Leonardo se mostram tristes pela breve separação. Em “Vidas Secas”,
Baleia manifesta inquietação ao perceber a agitação do sono agoniado de Fabiano
e o desconforto de Sinha Vitória produzido pelos sapatos apertados o que a faz
lembrar de outros, como a da cama de jiraus que gostaria de ver substituída por
outra mais confortável, como a que vira na fazenda de Seu Tomás da Bolandeira.
b) Os
personagens de “Memórias de um Sargento de Milícias” usufruem de um momento de
lazer e apreciam a festa numa situação de conforto que não encontra paralelo na
família de Fabiano. Os retirantes
nordestinos viviam em condições precárias, numa situação de isolamento de mundo
que não lhes permitia aproveitar o convívio social de uma festa natalina: Fabiano
sentia vontade de se vingar, Sinha Vitória sonhava com o conforto de uma cama
de couro, Baleia estava confusa com os cheiros que desconhecia. Ao contrário,
Leonardo, Luisinha, D.Maria e o barbeiro, por viverem em situação
economicamente mais confortável, sentiam-se satisfeitos e alegres pelo
piquenique e a festa de fogos.
10.
(Unicamp 2011) Poética I
De
manhã, escureço
De
dia, tardo
De
tarde anoiteço
De
noite ardo
A
oeste a morte
Contra
quem vivo
Do
sul cativo
O
este é meu norte.
Outros
que contem
Passo
por passo
Eu
morro ontem
Nasço
amanhã
Ando
onde há espaço.
--
Meu tempo é quando.
Nova York, 1950
(Vinicius de
Moraes, Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p.272.)
a) A poesia é um lugar privilegiado para
constatarmos que a língua é muito mais produtiva do que preveem as normas
gramaticais. Isso é particularmente visível no modo como o poema explora os
marcadores temporais e espaciais. Comente dois exemplos presentes no poema que
confirmem essa afirmação.
b) As duas últimas estrofes apresentam uma oposição
entre o eu lírico e os outros. Explique o sentido dessa
oposição.
Resposta:
a) O eu-lírico explora contradições ao
associar “escureço” a manhã, “tardo” a dia, “anoiteço” a tarde, assim como “ardo”
a noite. Assim, as sensações vividas parecem dissociar-se do cotidiano
convencional e revelam uma existência marcada pela emotividade. Espacialmente,
confessa-se atraído pelo sul, lugar geralmente associado a calor e
sensualidade, enquanto que o oeste lhe provoca rejeição pela sensação de morte
que sugere em oposição a “este”, local de nascimento e renovação.
b) Enquanto que “outros” contabilizam a vida
pelos atos passados ou projetos de futuro, o eu-lírico prefere a renovação
constante (“nasço amanhã”) e a imprevisibilidade dos locais que vai percorrer
(“ando onde há espaço”).
11. (Unicamp 2011) Entre Luz e Fusco
Entre
luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa
despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do
acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que
havíamos de casar um com o outro, e não foi só o aperto de mão que selou o
contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas... talvez
risque isso na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar,
fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento
divino quer é que não juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia
mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório
do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios
limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de
adolescentes... oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro
fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura
sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras
tu.
(Machado de
Assis, Dom Casmurro. Cotia: Ateliê Editorial, 2008, p. 195-196.)
a) Em que medida a imagem presente no título
desse capítulo de Dom Casmurro define a natureza da narrativa do
romance?
b) No emprego da segunda pessoa, não há
coincidência do interlocutor. Indique duas marcas linguísticas que evidenciam
essa não coincidência, explicitando qual é o interlocutor em cada caso.
Resposta:
a) O título remete
denotativamente ao instante breve em que o Sol nasce ou se põe. No entanto, a
primeira frase do texto amplia o seu significado ao sugerir uma reflexão sobre
a efemeridade do tempo. O protagonista relembra momentos do passado, registra
as suas impressões sobre episódios que o marcaram, como a cena de despedida com
Capitu antes do seu ingresso no seminário. Dom Casmurro é narrado em primeira
pessoa pelo protagonista masculino que dá nome ao romance, já velho
e solitário, desiludido e amargurado pela casmurrice, conforme lhe está no
apelido. A visão, pois, que temos dos fatos é perpassada da sua ótica subjetiva
e unilateral.
b) O autor usa a segunda pessoa do singular nas frases
“a malícia está antes na tua cabeça
perversa” e em “a investidura eras tu”
para se dirigir respectivamente ao leitor e a Capitu, explicitada no vocativo
“oh! minha doce companheira da meninice”.
12.
(Unicamp 2010) Leia o
trecho a seguir de A cidade e as serras:
– Sabes o que eu estava pensando, Jacinto?... Que
te aconteceu aquela lenda de Santo Ambrósio... Não, não era Santo Ambrósio...
Não me lembra o santo. Ainda não era mesmo santo, apenas um cavaleiro pecador,
que se enamorara de uma mulher, pusera toda a sua alma nessa mulher, só por a
avistar a distância na rua. Depois, uma tarde que a seguia, enlevado, ela
entrou num portal de igreja, e aí, de repente, ergueu o véu, entreabriu o
vestido, e mostrou ao pobre cavaleiro o seio roído por uma chaga! Tu também
andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua beleza de verão. E a
serra, hoje, zás! de repente, descobre a sua grande chaga... É talvez a tua
preparação para S. Jacinto.
(Eça de
Queirós, As cidades e as serras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p.
252.)
a) Explique a comparação feita por Zé Fernandes.
Especifique a que chaga ele se refere.
b) Que significado a descoberta dessa chaga tem
para Jacinto e para a compreensão do romance?
Resposta:
a) Zé Fernandes compara a
impressão que Jacinto teve inicialmente ao entrar em contato com a serra com a
do cavaleiro pecador quando foi atraído pela beleza de uma mulher: ambas foram
idealizadas, produto do encantamento inicial, que não pressupõe os defeitos.
Nenhuma delas tinha revelado ainda os pontos negativos que iriam chocar os seus
admiradores: a mulher, com a chaga no peito e a serra, com a chaga da miséria
dos trabalhadores.
b) Na Quinta de Tormes,
Jacinto continuava a experimentar os acessos de idealismo que o acometiam em
Paris, desconhecendo o profundo grau de pobreza em que viviam os trabalhadores
da sua propriedade. Quando se depara com
a realidade, sobressalta-se e dispõe-se a promover melhorias para atenuar essas
condições de penúria. Transforma-se em homem de ação, procura resolver
paternalisticamente a situação, a ponto de começar a ser confundido com um
“santo” ou com “D.Sebastião”. Introduz no campo alguma tecnologia (telefone),
mas sem colidir com a harmonia da vida rústica e a simplicidade da natureza.
13.
(Unicamp 2010) No excerto
a seguir, o romance Iracema é aproximado da narrativa bíblica:
Em Iracema, (...) a paisagem do Ceará
fornece o cenário edênico para uma adaptação do mito da Gênese. Alencar aproveitou até o máximo as
similaridades entre as tradições indígenas e a mitologia bíblica (...). Seu
romance indianista (...) resumia a narrativa do casamento inter-racial, porém
(...) dentro de um quadro estrutural pseudo-histórico mais sofisticado,
derivado de todo um complexo de mitos bíblicos, desde a Queda Edênica ao
nascimento de um novo redentor.
(David
Treece, Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, a política
indigenista e o Estado-Nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008: p.
226, 258-259.)
Partindo
desse comentário, responda às questões:
a) Que associação se pode estabelecer entre os
protagonistas do romance e o mito da Queda com a consequente expulsão do
Paraíso?
b) Qual personagem poderia ser associada ao “novo
redentor”? Por quê?
Resposta:
a) Se, na
mitologia bíblica, Eva seduz Adão com o fruto proibido, em Iracema, Alencar
apresenta como protagonista uma jovem índia que induz Martim ao pecado
oferecendo-lhe a seiva da jurema. Tanto na tradição judaico-cristã como na
narrativa alencariana estão presentes a Queda, a expulsão do paraíso e
subsequente punição: nesta, o nascimento de Moacir (filho do sofrimento),
naquela, o “parto com dor”.
b)
Na narrativa bíblica, o novo redentor é associado à figura de Jesus, exemplo do
homem novo que trouxe esperança à Humanidade. Em “Iracema”, será Moacir o
primeiro verdadeiro brasileiro, o homem novo, símbolo da miscigenação das raças
branca e indígena ( colonizador e colonizado), segundo a visão utópica de José
de Alencar.
14.
(Unicamp 2010) Leia o
seguinte comentário a respeito de O Cortiço, de Aluísio Azevedo:
Com efeito, o que há n' O Cortiço são formas
primitivas de amealhamento, a partir de muito pouco ou quase nada, exigindo uma
espécie de rigoroso ascetismo inicial e a aceitação de modalidades diretas e
brutais de exploração, incluindo o furto (...) como forma de ganho e a
transformação da mulher escrava em companheira máquina.
(...) Aluísio foi, salvo erro meu, o primeiro dos
nossos romancistas a descrever minuciosamente o mecanismo de formação da
riqueza individual. (...) N' O Cortiço [o dinheiro] se torna
implicitamente objeto central da narrativa, cujo ritmo acaba se ajustando ao
ritmo da sua acumulação, tomada pela primeira vez no Brasil como eixo da
composição ficcional.
(Antonio
Candido, De cortiço a cortiço. In: O discurso e a cidade. São Paulo:
Duas
Cidades,
1993, p. 129-3.) *amealhar: acumular (riqueza), juntar
(dinheiro) aos poucos
a) Explique a que se referem o rigoroso ascetismo
inicial da personagem em questão e as modalidades diretas e brutais de exploração
que ela emprega.
b) Identifique a “mulher escrava” e o modo como se
dá sua transformação “em companheira máquina”.
Resposta:
a) O ascetismo rigoroso,
esforço austero a que se refere o autor, caracteriza a personalidade e a forma
de vida a que se submete João Romão para ascender socialmente. Suportando todo
tipo de privação, executando trabalho pesado, sujeitando-se a uma vida sem
conforto, pensava somente em enriquecer a qualquer custo. Para isso não se
importava de roubar, mentir ou explorar os outros, obrigando os trabalhadores a
consumirem na sua venda ou aproveitando-se da gratidão de Bertoleza enquanto
esta lhe era conveniente.
b) Bertoleza, acreditando
que João Romão a tinha como amiga e confidente, entrega-lhe as suas poupanças
para pagar a sua alforria. Por gratidão, dedica-se inteiramente, trabalha de
sol a sol como uma escrava, além de lhe servir de amante. Quando já não é mais
conveniente aos planos de João Romão, passa a ser desprezada, principalmente
quando este começa a pensar num conveniente casamento com a filha do Miranda,
transformando-se assim em “companheira máquina”, “mulher objeto”. Finalmente,
ao descobrir que a carta de alforria era falsa e que João Romão tencionava
entrega-la à polícia, opta pelo suicídio.
15.
(Unicamp 2010) O excerto
a seguir, de Vidas Secas, trata da personagem sinha Vitória:
Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um
papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente com a comparação,
e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado.
Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos.
Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.
Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas
essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte
acanhado. Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a
às obrigações da casa. (...) Um mormaço levantava se da terra queimada.
Estremeceu lembrando-se da seca (...). Diligenciou afastar a recordação,
temendo que ela virasse realidade. (...) Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma
brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari
cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi
cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante
associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse
o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva,
inclinou-se – e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas,
inutilmente. (...) Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se
acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de
papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à
gente?
Arreliava-se com a comparação. Pobre do papagaio.
Viajara com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: -
"Meu louro." Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando
Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se
daquilo.
(Graciliano
Ramos, Vidas secas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007, p.41-43.)
a) Por que a comparação feita por Fabiano incomoda
tanto sinha Vitória? Que lembrança evoca?
b) Tendo em vista a condição e a trajetória de
sinha Vitória, justifique a ironia contida no nome da personagem. Que outra
personagem referida no excerto acima também revela uma ironia no nome?
Resposta:
a) Sinha
Vitória sente-se incomodada com a comparação feita por Fabiano, por este
ridicularizar o seu jeito desengonçado de caminhar quando usava sapatos. O fato
de ser comparada a um papagaio fere a sua vaidade feminina, mas incomoda-a
também a lembrança do sacrifício do animal, a situação extrema a que se tinha
obrigada para aliviar a fome da família.
b) É irônico
o fato de alguém tão sofredor e miserável ter o nome de Vitória. Como Baleia,
cachorra magra que vive no sertão, o nome da personagem apresenta
características contrárias à realidade em que vivem.
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Bons estudos!!
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