1.
(Uerj 2012) TEXTO II
Ele está cansado, é quase
meia-noite, e pode afinal voltar para casa. (...). No edifício da esquina, o
mesmo cachorro de focinho enterrado na lata de lixo. Ao passar sob as árvores,
ao menor arrepio do vento, gotas borrifam-lhe o rosto, que ele não se incomoda
de enxugar.
Ao mexer no portão, o
cachorrinho late duas vezes – estou aqui, meu velho – e, 1por mais
que saltite ao seu lado, procurando alcançar-lhe a mão, ele não o agrada. (...)
Prevenido, desvia-se do
aquário sobre o piano: o peixinho dourado conhece os seus passos e de puro
exibicionismo entrega-se às mais loucas evoluções.
Ele respira fundo e,
cabisbaixo, entra no quarto. 2A mulher, sentada na cama, a folhear
sempre uma revista (é a mesma revista antiga), olha para ele, mas ele não a
olha.
No banheiro, veste em
surdina o pijama e, ao lavar as mãos, recolhe da pia os longos cabelos alheios.
Escova de leve os dentes, sem evitar que sangrem as gengivas.
– Ai, como é triste a
velhice... – confessa para o espelho, e são palavras que não querem dizer nada.
Aperta as torneiras da pia,
do chuveiro e do bidê – se uma delas pingasse ele já não poderia dormir.
Na passagem, apanha o livro
sobre o guarda-roupa – ele a olhou de relance, mas ela não o olhou – e
dirige-se para a sala, onde acende a lâmpada ao lado da poltrona. Em seguida,
descalço, sobe na cadeira e com a chave dá corda ao relógio. Entra na cozinha
e, ao abrir a luz, pretende não ver a mesma barata na sua corrida tonta pelos
cantos. Deita um jarro d’água no filtro e bebe meio copo, que enxuga no pano e
põe de volta no armário.
Antes de sentar na
poltrona, detém-se diante do quarto da filha – a porta está aberta, mas ele não
entra. Esboça um aceno e presto encolhe a mão. Por mais que afine o ouvido não
escuta o bafejo da criança em sossego – e se ela deixou de respirar?
(...) Abre o livro e
concentra-se na leitura: frases sem nenhum sentido.
Na casa silenciosa, apenas
o voltear das folhas lá no quarto, às suas costas o peixinho estala o bico a
modo de um velho que rumina a dentadura. Por vezes, cansado demais, cabeceia e
o livro cai-lhe no joelho – enquanto não se apaga a luz do quarto ele não vai
deitar.
(...)
Está salvo desde que ignore
a porta do quarto da filha; ergue, com esforço, as pálpebras pesadas de sono e
lê mais algumas linhas, evitando levar a mão ao rosto, onde um músculo dispara
de repente a tremer no canto da boca. (...)
Ao extinguir-se enfim a
outra luz, ele deixa passar alguns minutos e, arrastando os pés no tapete,
recolhe-se ao quarto, acende a lâmpada do seu criado-mudo, com cautela infinita
para não encarar a esposa que, voltada para o seu lado, pode estar com um olho
aberto ou, quem sabe, até com um sorriso nos lábios. (...)
Será uma grande demora até
que na rua clarinem* as primeiras buzinas – os galos da cidade. (...)
Prepara-se para a noite em que há de entrar numa casa deserta e, ao abrir a
porta, assobiará duas notas, uma breve, outra longa: todos os quartos vazios, o
assobio é para a sua alma irmã, a baratinha no canto escuro.
(...)
Longe vai a manhã, mas
resta-lhe o consolo de que, ao saltar do leito, esquecerá entre os lençóis o
fantasma do seu terror noturno. Outra vez ergue-se no quarto o ressonar
tranquilo da esposa; cuidadoso de não ranger o colchão, ele volta-se para o
outro lado. Pouco importa se nunca mais chegar a dormir. Afinal você não pode
ter tudo.
DALTON TREVISAN
A guerra
conjugal.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
* Clarinem - soem como
clarim
Nos trechos transcritos a seguir, estão
sublinhados dois verbos que podem ser usados com variação da regência:
transitivo direto ou transitivo indireto. A variação da regência altera o
sentido do verbo “agradar”: fazer agrados ou ser agradável. Já o verbo “olhar”
expressa o mesmo sentido nos dois casos.
por mais que saltite ao seu
lado, procurando alcançar-lhe a mão, ele não o agrada. (ref.1)
A mulher, sentada na cama, (...) olha
para ele, mas ele não a olha. (ref. 2)
Identifique, no primeiro trecho, a regência
do verbo “agradar” e o sentido em que ele foi empregado.
Em seguida, reescreva o segundo trecho,
variando a regência do verbo “olhar” em cada ocorrência.
Resposta:
O verbo agradar pode ser
intransitivo, transitivo indireto ou direto, com o sentido de causar boa impressão, satisfazer e fazer carinho, respectivamente. No trecho
“ele não o agrada”, o verbo é transitivo direto, portanto com valor semântico de fazer agrados, acarinhar. No segundo
trecho, a variação da regência do verbo “olhar” não altera o sentido do texto,
pois a mulher, sentada na cama, olha-o,
mas ele não olha para ela é sinônima da original.
TEXTO PARA AS
PRÓXIMAS 2 QUESTÕES:
Gênesis
Quando ele nasceu foi no sufoco
Tinha uma vaca, um burro e um louco
Que recebeu Seu Sete
Quando ele nasceu foi de teimoso
Com a manha e a baba do tinhoso
Chovia canivete
Quando ele nasceu nasceu de birra
Barro ao invés de incenso e mirra
Cordão cortado com gilete
Quando ele nasceu sacaram o berro*
Meteram faca, ergueram ferro
Exu falou: ninguém se mete!
Quando ele nasceu tomaram cana
Um partideiro puxou samba
Oxum falou: esse promete!
ALDIR BLANC
In: FERRAZ, Eucanaã (org.).
Veneno antimonotonia.
Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
* berro – revólver
2.
(Uerj 2012) Uma característica marcante
do poema “Gênesis” é a simetria, que consiste na harmonia de certas combinações
e proporções.
Aponte dois recursos diferentes utilizados
no poema – um rítmico/sonoro e outro sintático – que contribuem para essa
simetria.
Resposta:
O poema de Aldir Blanc, que se notabilizou
como letrista a partir de suas parcerias com João Bosco, apresenta
recursos rítmicos/sonoros e também sintáticos, típicos das manifestações orais
da linguagem que acompanham a música. Assim, a disposição das rimas com esquema
AAB/CCB/DDB/EEB//FFB, além do uso de versos de nove e oito sílabas que se
alternam no primeiro e segundos versos de cada grupo, conferem ao poema o
equilíbrio necessário para que música e letra se completem e resultem em algo
agradável de ouvir. Também a repetição do verso “Quando ele nasceu”, que inicia
o primeiro verso de cada estrofe, constitui recurso sintático importante para a
simetria do poema.
3.
(Uerj 2012) Natal
Jesus nasceu! Na abóbada infinita
Soam cânticos vivos de alegria;
E toda a vida universal palpita
Dentro daquela pobre estrebaria...
Não houve sedas, nem cetins, nem rendas
No berço humilde em que nasceu Jesus...
Mas os pobres trouxeram oferendas
Para quem tinha de morrer na Cruz.
Sobre a palha, risonho, e iluminado
Pelo luar dos olhos de Maria,
Vede o Menino-Deus, que está cercado
Dos animais da pobre estrebaria.
Não nasceu entre pompas reluzentes;
Na humildade e na paz deste lugar,
Assim que abriu os olhos inocentes,
Foi para os pobres seu primeiro olhar.
No entanto, os reis da terra, pecadores,
Seguindo a estrela que ao presepe os guia,
Vêm cobrir de perfumes e de flores
O chão daquela pobre estrebaria.
Sobem hinos de amor ao céu profundo;
Homens, Jesus nasceu! Natal! Natal!
Sobre esta palha está quem salva o mundo,
Quem ama os fracos, quem perdoa o Mal!
Natal! Natal! Em toda Natureza
Há sorrisos e cantos, neste dia...
Salve, Deus da Humildade e da Pobreza,
Nascido numa pobre estrebaria!
OLAVO BILAC
In: BUENO, Alexei (org.). Olavo
Bilac: obra reunida.
Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1996.
O poema “Natal” retrata o episódio que dá
início à história do Cristianismo, reunindo os elementos que o caracterizam
segundo a tradição católica. O poema “Gênesis” se refere ao mesmo episódio, mas
o faz por meio de uma linguagem bem diversa e de forma menos explícita.
Considerando os dados contidos no poema de
Olavo Bilac, transcreva os dois versos de “Gênesis” que fazem alusão ao
nascimento de Jesus.
Compare, agora, os seguintes versos de
“Natal” e “Gênesis”:
Há sorrisos e cantos, neste
dia... (v.26)
Um partideiro puxou samba (v.14)
Explique a semelhança e a
diferença dos conteúdos desses versos.
Resposta:
Os versos “Tinha uma vaca, um burro e um louco” e
“Barro ao invés de incenso e mirra” do poema “Gênesis” estabelecem
intertextualidade com o relato bíblico do nascimento de Jesus da tradição
judaico-cristã. Assim como o poema “Natal” de Bilac, refere-se ao episódio com
expressões de júbilo, embora com linguagem caracteristicamente popular e
brasileira, contrastando com o tom convencional e genérico do de Olavo Bilac.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
Previsões de
especialistas
A mídia nos bombardeia
diariamente com as previsões de especialistas sobre o futuro. Esses experts mais
erram do que acertam, mas nem por isso deixamos de recorrer a eles sempre que o
horizonte se anuvia. Como explicar o paradoxo?
Uma boa tentativa é o
recém-lançado livro do escritor e jornalista Dan Gardner. As passagens mais
divertidas do livro são sem dúvida aquelas em que o autor mostra, com exemplos
e pesquisas científicas, quão precária é a previsão econômica e política.
Num célebre discurso de
1977, por exemplo, o então presidente dos E.U.A., Jimmy Carter, ancorado nos
conselhos dos principais experts do planeta, conclamou os americanos a
reduzir drasticamente a dependência de petróleo de sua economia, porque os
preços do hidrocarboneto subiriam e jamais voltariam a cair, o que
inevitavelmente destruiria o “American way”*. Oito anos depois, as cotações do
óleo despencaram e permaneceram baixas pelas duas décadas seguintes.
Alguém pode alegar que
Gardner escolhe de propósito alguns exercícios de futurologia que deram errado
apenas para ridicularizar a categoria toda.
Para refutar essa objeção,
vamos conferir algumas abordagens do problema.
Em 1984, uma revista
britânica pediu a 16 pessoas que fizessem previsões sobre taxas de crescimento,
câmbio, inflação e outros dados econômicos. Quatro dos entrevistados eram
ex-ministros de finanças; quatro eram presidentes de empresas multinacionais;
quatro, estudantes de economia de Oxford; e quatro, lixeiros de Londres. Uma
década depois, as predições foram contrastadas com a realidade e classificadas
pelos níveis de acerto. Os lixeiros terminaram empatados com os presidentes de
corporações em primeiro lugar. Em último, ficaram os ministros – o que ajuda a
explicar uma ou outra coisinha sobre governos.
A razão para tantas
dificuldades em adivinhar o futuro é de ordem física. Nós nos habituamos a ver
a ciência prevendo com enorme precisão fenômenos como eclipses e marés. Só que
esses são sistemas lineares ou, pelo menos, sistemas em que dinâmicas impostas
pelo caos podem ser desprezadas. E, embora um bom número de fenômenos naturais
seja linear, existem muitos que não o são. Quando o homem faz parte da equação,
pode-se esquecer a linearidade.
Nossos cérebros também
trazem de fábrica alguns vieses que tornam nossa espécie presa fácil para
adivinhos. Procuramos tão avidamente por padrões que os encontramos até mesmo
onde não existem. Temos ainda compulsão por histórias, além de um desejo
irrefreável de estar no controle. Assim, alguém que ofereça numa narrativa
simples e envolvente a previsão do futuro pode vendê-la facilmente a incautos.
Não é por outra razão que oráculos, profecias e augúrios estão presentes em
quase todas as religiões.
Como diz Gardner, “vivemos
na Idade da Informação, mas nossos cérebros são da Idade da Pedra”. Eles não
foram concebidos para processar o papel do acaso, no cerne do conhecimento
científico atual. Nós continuamos a tratar as falas dos especialistas como se
fossem auspícios** divinos. Como não poderia deixar de ser, frequentemente
quebramos a cara.
HÉLIO
SCHWARTSMAN
Adaptado de
www1.folha.uol.com.br, 30/06/2011
(*)“American way”: estilo
americano de vida
(**)auspícios: prenúncios,
presságios
4.
(Uerj 2012) O texto de Hélio
Schwartsman distingue fenômenos que podem ser previstos com precisão de outros
que não o podem.
Apresente um exemplo do texto para os
fenômenos do primeiro tipo e outro para os fenômenos do segundo tipo.
Depois, aponte o que, para
o autor, distingue os dois tipos de fenômeno.
Resposta:
O texto de Hélio
Schwartsman distingue fenômenos que podem ser previstos com precisão (marés, eclipses, fenômenos
naturais, sistemas lineares e outros em que dinâmicas impostas pelo caos podem
ser desprezadas) de outros que não o podem (taxas de câmbio, preços do petróleo, de
crescimento, quaisquer dados econômicos, fenômenos em que há a presença do
homem). Segundo o autor, a diferenciação entre eles reside na linearidade ou
não dos fenômenos, assim como a
presença ou não do ser humano na produção dos fenômenos.
TEXTO PARA A
PRÓXIMA QUESTÃO:
A CIDADE SITIADA
(1949)
O
subúrbio de S. Geraldo, no ano de 192..., já misturava ao cheiro de estrebaria
algum progresso. Quanto mais fábricas se abriam nos arredores, mais o subúrbio
se erguia em vida própria sem que os habitantes pudessem dizer que
transformação os atingia. Os movimentos já se haviam congestionado e não se
poderia atravessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos
vagarosos puxavam, enquanto um automóvel impaciente buzinava atrás lançando
fumaça. Mesmo os crepúsculos eram agora enfumaçados e sanguinolentos. De manhã,
entre os caminhões que pediam passagem para a nova usina, transportando madeira
e ferro, as cestas de peixe se espalhavam pela calçada, vindas através da noite
de centros maiores. Dos sobrados desciam mulheres despenteadas com panelas, os
peixes eram pesados quase na mão, enquanto vendedores em manga de camisa
gritavam os preços. E quando sobre o alegre movimento da manhã soprava o vento
fresco e perturbador, dir-se-ia que a população inteira se preparava para um
embarque.
Ao
pôr-do-sol galos invisíveis ainda cocoricavam. E misturando-se ainda à poeira
metálica das fábricas o cheiro das vacas nutria o entardecer. Mas de noite, com
as ruas subitamente desertas, já se respirava o silêncio com desassossego, como
numa cidade; e nos andares piscando de luz todos pareciam estar sentados. As
noites cheiravam a estrume e eram frescas. Às vezes chovia.
(LISPECTOR, Clarice. A Cidade sitiada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.)
5. (Uerj 2005) No texto, o crescimento de um subúrbio é representado como uma força que
se impõe aos habitantes.
a)
Transcreva duas orações que, apresentando como núcleo do sujeito um substantivo
referente a um ser humano, confirmam essa perspectiva.
b)
Explique a afinidade que há entre esse modo de representar o ambiente e um
movimento literário surgido no Brasil no final do século XIX.
Resposta:
a)
Algumas das orações são:
-
os habitantes pudessem dizer
-
desciam mulheres despenteadas
-
a população inteira se preparava
-
vendedores em manga de camisa gritavam
b)
O texto privilegia a caracterização do ambiente físico e local, colocando tipos
humanos como simples elementos integrantes do meio, à semelhança do naturalismo
literário.
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